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O corvo (I)

O corvo (I)

Marco Guimarães*

Há dois meses o inverno parisiense substituiu o outono, mas, inexplicavelmente, a temperatura continuou amena. As chuvas, assíduas na estação, ainda não tinham dado o ar de sua graça. Segundo a meteorologia, um anticiclone não deixava o ar frio polar, estacionado no norte da Europa, provocar baixas temperaturas. O que intrigava os especialistas do tempo e chamava a atenção dos moradores de Paris era o excessivo número de descargas elétricas riscando os céus de tempos em tempos, com uma luminosidade nunca vista.


Mas havia uma outra ocorrência que despertava a atenção dos moradores da cidade: o inexplicável desaparecimento de uma menina de seis anos. O único registro dessa menina e de sua sequestradora fora feito pela câmera externa de um hotel, que as mostravam descendo a Rue Pascal. A imagem estava muito nítida porque, naquele exato momento, o ambiente havia sido iluminado pelo forte brilho dos recorrentes raios que despencavam dos céus.


Às 5:45 da madrugada, o capitão Maurice Maurel, responsável pelo caso, preparou-se para deixar a delegacia onde trabalhava e ir até sua casa. Tomaria um banho e trocaria de roupa. Aproveitaria, ainda, e daria uma pequena cochilada. Ele e sua equipe, a tenente Natalie Erlanger e o policial Pierre Dumont, não dormiam há dois dias por conta das investigações sobre o caso do sequestro. Teria pouco tempo, porque, em mais duas horas, deveria retornar para uma coletiva com a imprensa.


Dirigiu-se ao estacionamento, mas voltou a sua sala quando se deu conta de ter esquecido as chaves do carro. — Merda — disse ele, resmungando —, cansado como estou, sou capaz de esquecer o caminho de casa.

O caminho que tomou incluía uma passagem pela Rue Pascal. Uma vez nela, o seu telefone celular tocou. Cansado como estava, achou mais prudente encostar o carro para atender o chamado. Nesse momento, deu-se conta de ter estacionado justamente em frente ao hotel cujas câmeras fizeram o último registro da sequestrada e de sua sequestradora. Ao ver que não havia interlocutor do outro lado da linha, desligou o telefone e o colocou no banco do carona. Resolveu então saltar e repetir, pela décima vez, o trajeto feito pelas duas quando as câmeras deixaram de registrar as suas imagens.


Desceu a Rue Pascal, mas chegando ao Boulevard Arago, resolveu fazer o caminho de volta. Ao passar pelas escadas que ligam a Rue Pascal ao Boulevard Port Royal, parou, hesitou entre voltar para o carro e ir até o Boulevard. Embora cansado, optou por subir as escadas; quando se aproximou da metade do percurso, um raio desafiou a escuridão ainda presente, transformando o final daquela noite em dia claro. A forte claridade o cegou momentaneamente. Subiu os degraus restantes tateando a parede, sem notar que um corvo, que seguia na mesma direção, passara raspando pela sua cabeça. Quando chegou ao destino, parou indeciso.

Olhou para um lado; olhou para o outro, não havia vivalma nas imediações, salvo o corvo aventurando-se em pequenos voos. A ausência de pessoas naquela hora não despertou a sua atenção; afinal, ainda era muito cedo.

Resolveu, então, encostar-se em um dos pequenos muros de cimento que guardavam a entrada das escadas por onde viera. Uma vez sentado, coçou a orelha direita e pensou consigo mesmo: — Para onde, diabos, foram essas duas?

  • Escritor
Rádio Itatiaia

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