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BH terá as primeiras estátuas negras após 136 anos da abolição da escravatura

Obras serão inauguradas no próximo mês; imagens de mulheres negras mineiras imortalizam legado e história de um povo em Belo Horizonte
BH terá as primeiras estátuas negras após 136 anos da abolição da escravatura
À esquerda Lélia Gonzalez, na direita Carolina Maria de Jesus | Crédito: Reprodução/ Arquivo UFMG e Foto Arquivo Público do Estado de São Paulo

Nesta segunda-feira, 13 de maio, celebra-se 136 anos da abolição da escravatura, data que representou apenas o começo de uma jornada em busca da liberdade para os povos negros. No próximo mês, Belo Horizonte vai honrar o legado e as contribuições históricas deste povo com a inauguração das primeiras estátuas de personalidades negras da cidade, que ficarão no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, na região central.

Os monumentos emblemáticos serão representados por duas mulheres que figuram como símbolos nacionais culturais e políticos nas áreas da educação, literatura e antropologia. As homenageadas serão a escritora mineira Carolina Maria de Jesus e a antropóloga Lélia Gonzalez, também nascida no Estado (leia mais sobre a história delas abaixo).

Elas serão posicionadas em frente ao Teatro Francisco Nunes, uma ao lado da outra, como se estivessem conversando.

O Parque Municipal foi selecionado devido à sua distinção como o patrimônio ambiental mais antigo da cidade, sua localização central e o acesso gratuito. Além disso, a segurança oferecida pela Guarda Municipal para o monitoramento e a preservação das obras foi um fator determinante na escolha deste espaço.

Quem teve a ideia de prestar essa homenagem foi a belo-horizontina especialista em relações étnico-raciais Etiene Martins. Ela conseguiu apoio da deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), que financiou o projeto por meio de emenda parlamentar. E a Prefeitura de Belo Horizonte, através da Secretaria de Cultura, ficou a cargo da execução e inauguração dessas estátuas.

Idealizadora em local que serão instaladas es estátuas no Parque Municipal estátuas mulheres negras
Etiene Martins, idealizadora do projeto, em foto tirada no local em que serão instaladas es estátuas, no Parque Municipal | Crédito: Divulgação/ Arquivo Pessoal Etiene Martins

Foi a chefe de gabinete da deputada do PSOL e presidente do partido na capital mineira, Jozeli Rosa, que levou essa demanda a Bella Gonçalves.

Ela conta que, em uma viagem com Etiene ao Rio de Janeiro, no começo de 2023, elas debateram sobre a falta desse tipo de representatividade na cidade. Assim, entendendo que “representatividade é reescrever a história com a caneta na mão estando num lugar de poder e perceber a necessidade disso ao ocupar estes lugares”, ela levou o pedido à deputada. 

“Essa parceria, irmandade e a luta antirracista que a deputada Bella Gonçalves trava em seu mandato e em sua trajetória, culmina na realização desta iniciativa, que pensa na cidade que queremos, um território que luta contra o racismo”, diz.

Mulheres pretas homenageadas também fazem parte da história mineira

As duas personalidades escolhidas para receberem as primeiras homenagens são amplamente reconhecidas e admiradas internacionalmente, e ambas nasceram em Minas Gerais. Carolina Maria de Jesus é natural de Sacramento, no sudoeste do Estado, e Lélia Gonzalez é nascida em Belo Horizonte.

A idealizadora, que faz parte da Rede de Mulheres Negras, uma iniciativa nacional do movimento negro, ressalta que as personalidades não poderiam ser outras porque são os maiores nomes de Minas quando se fala da luta que transborda o País. 

“São mineiras que transbordaram os muros da nossa Horizonte e da velha Gerais. Carolina Maria de Jesus teve sua obra traduzida e alcançou mais de 40 países. Lélia Gonzalez é a maior feminista da América Latina e no mundo no período em que fez sua construção. Não há nomes maiores para homenagear a construção e legado mineiro. São mulheres mineiras que alcançam o mundo”, destaca Etiene. 

Maria Carolina de Jesus é autora do livro Quarto de Despejo
Carolina Maria de Jesus é autora do livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, publicado em 1960 | Crédito: Divulgação / Mostra CMJ

Apesar disso, muitas pessoas que não estão envolvidas com a pauta ou a história dessas mulheres desconhecem sua trajetória que permeia também os muros, escolas e ruas de Belo Horizonte. 

É o que notou Etiene em 2019, quando era proprietária de uma pequena livraria no centro da Capital, a Bantu, especializada em literatura negra. Nesta época, ela afirma que viveu uma quebra dessa bolha, quando Angela Davis veio ao Brasil e disse que aprendeu muito com Lélia Gonzalez

“Na época, muitas pessoas procuraram minha loja pois na região eu era uma das poucas pessoas que tinham as publicações de Lélia para vender. Foi após isso que grandes editoras começaram a republicar suas obras também, como a Companhia das Letras”, relembra Etiene. 

Lélia Gonzalez é referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe, sendo considerada uma das principais autoras do feminismo negro no país
Lélia Gonzalez é referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe, sendo considerada uma das principais autoras do feminismo negro no País | Crédito: Reprodução/ Governo Federal

Por uma Belo Horizonte mais colorida

A falta de representatividade foi o principal motivo que impulsionou a concepção deste projeto, que reconhece uma realidade não só nacional, mas também local, na capital mineira.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 50% da população de Belo Horizonte é negra. Apesar disso, nenhuma das mais de cem estátuas da cidade, até o momento, retrata alguma personalidade negra.

“Assim como em todo o Brasil, a maior parte da população se declara negra. Então, como caminhar em uma estrutura em que a maior parte das estátuas representam pessoas brancas? Essa é a primeira questão”, fala Etiene sobre uma de suas motivações.

Essas constatações pautam-se nos dados públicos, que revelam que a maioria dos monumentos, bustos e esculturas da cidade retratam homens brancos. Este desequilíbrio notável foi identificado, por exemplo, no inventário realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) no último ano, que catalogou cerca de 150 obras, com predominância de italianos, espanhóis, portugueses e militares, uma escassa representação de mulheres – e nenhuma pessoa negra.

“O que me motiva a compreender e lutar para que exista essa representação através das estátuas é que as pessoas conheçam uma Belo Horizonte verdadeira, que é uma cidade colorida, e não essa representação ‘pálida’ a que as estátuas remetem”, explica a especialista. 

Inauguração deveria ser um mês após data que marca a assinatura da abolição da escravatura

A princípio, a inauguração estava prevista pela Secretaria de Cultura de Belo Horizonte para o dia 13 de junho, daqui a um mês. Entretanto, a PBH informou à reportagem, agora, que ainda não há data definida.

À idealizadora Etiene, a secretaria informou que a mudança da data original se deveu ao atraso na fundição das estátuas, mas que o dia para a inauguração permanece ainda para o próximo mês.

Segundo Jozeli, reuniões com a secretaria estão sendo realizadas para agilizar este processo. A ideia é que a inauguração seja feita com um evento no parque, que contará com rodas de conversa com a escritora negra Conceição Evaristo, recém-eleita como imortal da Academia Mineira de Letras. Além disso, ela tenta uma parceria para que Angela Davis também esteja presente. 

Foto de Angela Davis, uma das maiores ativistas a favor do anticapitalismo, antirracismo e do feminismo negro
Angela Davis, uma das maiores ativistas a favor do anticapitalismo, antirracismo e do feminismo negro | Crédito: Reprodução/ Instagram Angela Davis

A manhã da inauguração seria desenhada para debater a importância deste marco na história da Capital, além de trazer à tona a história das duas homenageadas.

“Angela Davis teve uma amizade como companheira intelectual de Lélia. Então, seria Angela falando de Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo sobre a eterna Carolina Maria de Jesus. Depois, entraremos para o teatro, onde as duas estátuas estão posicionadas conversando, como se esperando na fila. A disposição é pensada para trazer uma representação poética das duas dialogando sobre o tempo passado, presente e futuro”, explica a presidente do PSOL-BH. 

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