Zote e o Marechal

25 de junho de 2020 às 0h13

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Crédito: Freepik

Cesar Vanucci*

“Zote é fino observador e psicólogo do sertão.” (João Gilberto Rodrigues da Cunha)

Estou vindo de uma releitura prazerosa. Crônicas do cotidiano boladas em tom alegre. “O Triângulo de bermudas”, de João Gilberto Rodrigues da Cunha, médico, empresário, ex-presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, é um livro que reúne acontecências de refinado sabor.

Numa narrativa vivaz e cabritante, que se espicha por 150 páginas, são trazidos ao deleite dos leitores pitorescos causos de personagens que povoam aquelas bandas do mapa das Gerais onde um “narigão esquisito se intromete entre Goiás e São Paulo, cheirando os fundos de Mato Grosso”, conhecidas por Triângulo Mineiro.

O autor, dono de talento e verve, sabe jogar bem com a imprevisibilidade que é a própria essência do humor. Já teve romance selecionado para a finalíssima do “Jabuti” de literatura.

O cidadão chamado Zote, que faz dupla com um marechal no título destas maldatilografadas, é mostrado no livro de corpo inteiro, num sem-número de proezas folclóricas. O autor deixa escapar afetuosa simpatia pelo dito cujo.

Explica que “nem nas piores aperturas o Zote perdeu sua audácia comercial nem seu senso de humor”. Conta que em tempo de crise “ele construiu na rodovia o seu Motel Zote, durante anos ponto de parada para refeição ou sono daqueles que iam de São Paulo para Brasília”, acrescentando que “o motel do Zote era motel mesmo e não ponto de sacanagem, como os seus futuros sucessores.”

Dito o que, recorda passagem em que seu irmão José Humberto, médico famoso, deputado federal, num domingo setembrino, participou no local do apreciado rodízio de churrasco, disputado costumeiramente por considerável número de clientes “Bebeu, comeu, festivo, e no final recebeu na mesa a visita alegre de Zote, orgulhoso de sua visita e presença.”

Conversa vai, conversa vem, o irmão do João Gilberto, que, segundo ele, “sempre foi de certas prosopopeias em elogios”, resolveu gastar “sem economizar no Zote”, entoando louvação à beleza do lugar, à excelência dos comes e bebes, por aí. “Zote ficou feito mosquito em tampo de xarope”.

Na continuidade do papo ameno, o Zé Humberto, “com seu jeito confidente e sério”, perguntou: “Zote, e o ambiente aqui é sempre sadio?” João Gilberto ainda falando: “Zote, conhecia o compadre, mas por via das dúvidas achou que devia devolver os agrados: – Sadio é, doutor. Mas, se o senhor quiser, nós adoecemos ele em meia hora!” Não deu outra. “Zé Humberto, bom médico, horror à doença e similaridades zotianas, não esperou clarear o tipo de epidemia programada, bateu em retirada.” Um amigo que o acompanhava, “Elias, ainda espantado, rindo escondido da audácia do Zote, sentenciou o acontecido com a exclamação do povinho do Irara: – Vote!”

O causo acima coloca o leitor em condições de ficar sabendo quem é o Zote. Já o marechal dispensa apresentações. Cidadão ilibado e discreto, intelectual, comedido nos gestos, Humberto Alencar Castelo Branco foi o primeiro presidente do ciclo de militares catapultados às culminâncias do poder político com o golpe de 64.

No dia 3 de maio de 1964, os caminhos do Zote e do marechal se cruzaram. Este amigo de vocês estava lá. Viu, anotou e registra aqui o ocorrido. Castelo Branco visitava Uberaba, pouco depois de assumir o governo. Manteve acesa tradição implantada por Getúlio: a participação presidencial na solenidade de abertura da feira de zebu.

Desceu do avião em meio a forte aparato de segurança, recebendo os cumprimentos protocolares. Dirigiu-se à porta de saída do aeroporto. Nas imediações, ao contrário de outros anos, a presença de público, contido por cordões de isolamento, era reduzida.

À hora em que transpunha a distância até o veículo que o conduziria ao parque da Exposição, uma voz esganiçada, em meio aos populares, passou a chamá-lo: – Castelo, Castelo! O marechal e o pessoal à volta, trazendo nos semblantes claros sinais de tensão, voltaram-se pra o ponto de onde provinha a inesperada chamada. Era o Zote: “- Castelo, vê se dá pra manerar. A barra tá pesando.” Posso garantir, como testemunha ocular, que na cara habitualmente sisuda do marechal ganhou contorno um sorriso.

*Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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