Mostra de Cinema de Tiradentes é remodelada
19 de janeiro de 2021 às 0h26
A Mostra de Cinema de Tiradentes em 2020 talvez tenha sido um dos últimos grandes eventos de audiovisual do Brasil antes da pandemia. Um ano depois, após muitas idas e vindas, fechamentos e flexibilizações, a longa espera por uma vacina, o evento que abre o calendário do cinema nacional volta remodelado em uma versão especial e vencendo a desconfiança de patrocinadores e apoiadores.
A 24ª edição da Mostra de Tiradentes será realizada de 22 a 30 de janeiro, no formato on-line, com todas as atividades concentradas no site www.mostratiradentes.com.br e acompanhadas nas redes sociais da Universo Produção. A programação abrangente, diversificada e gratuita exibe 114 filmes (31 longas, 2 médias e 81 curtas-metragens) em pré-estreias e mostras temáticas; conta com a participação de 102 convidados no centro do 24º Seminário do Cinema Brasileiro que inclui 22 debates, a série Encontro com os Filmes e rodas de conversa; promove dez oficinas com a oferta de 225 vagas, realiza performance audiovisual, exposição, shows e atrações artísticas.
De acordo com a diretora da Universo Produção e coordenadora-geral da Mostra, Raquel Hallak, a edição 2021 da Mostra de Tiradentes se beneficiou, de alguma forma, da realização de dois outros eventos comandados por ela ao longo de 2020: a Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP) e a Mostra de Cinema de Belo Horizonte (Cine BH).
“Nunca poderíamos imaginar que em janeiro de 2021 estaríamos vivendo essa situação. Mas decidimos logo de cara que faríamos a edição desse ano. Não tínhamos um modelo, seria difícil, mas era uma edição necessária. Para nós é uma edição ‘especial’, porque vamos voltar ao modelo presencial, que também será diferente, aproveitando coisas que aprendemos ao longo da pandemia. Nesse período vivemos muitas experiências. Quando a pandemia foi declarada estávamos no auge da produção da Cineop. Ninguém sabia o que iria acontecer. Fomos adiando, tentando pensar modelos. Os parceiros não acreditavam numa possibilidade de fazer on-line. Perdemos apoios, mas não desistimos. Em BH as pessoas já entendiam mais que o virtual era viável, que um evento híbrido poderia ser uma solução. Entramos mais respaldo e também realizamos a mostra”, relembra Raquel Hallack.
Organização – Para realizar o evento do Campo das Vertentes a equipe trabalhou três cenários possíveis ao longo de 2020 até chegar a hora de tomar a decisão. Os índices de acompanhamento de progressão da doença indicavam que a possibilidade de uma versão totalmente física era cada vez mais inviável. Foi aí que o martelo foi batido: seria uma versão totalmente remota.
O tamanho da mostra, a participação de convidados internacionais, reinventar um modelo de produção já consagrado e dar uma resposta à população de Tiradentes e região era uma grande preocupação. A ordem era manter uma programação fiel à tradição do evento e capitalizar o melhor que o mundo virtual tem a oferecer: o alcance.
“Se por um lado perdemos a oportunidade do encontro afetuoso e das conversas de negócios pelas ruas de Tiradentes, de outro ganhamos em alcance. A internet possibilita que pessoas de todo o mundo acompanhem. Que outros distribuidores, outros diretores de festivais vejam a nossa programação. Tiradentes tem o papel de apresentar o cinema nacional para a cadeia produtiva internacional e pelo on-line isso fica mais fácil”.
Os custos de produção da mostra ficaram mais enxutos, já que não foi mais necessário gastar, por exemplo, com hospedagem e alimentação de convidados e imprensa. Outros, porém, como a produção de vídeos e a própria plataforma foram inflados. A opção foi construir uma plataforma exclusiva para o evento e não apenas transmitir pelas redes sociais. Foram economizados cerca de R$ 1 milhão. Das cerca de 250 empresas mineiras contratadas normalmente como fornecedoras, esse total caiu para 100.
Drive-in – Mas as ruas tricentenárias da cidade colonial não ficarão muito tempo saudosas do cinema nacional e nem a sétima arte brasileira vai ficar sem os encantos de Tiradentes. “Aconteceu também uma mudança no perfil desses fornecedores, agora mais ligados à tecnologia. Lamentamos muito porque a cidade e a região perdem. Sabemos a importância que a Mostra tem para a geração de empregos em toda a região. Mas a edição especial continua projetando o nome de Tiradentes para o mundo. E não vamos desistir de estar lá tão logo seja possível. Vamos fazer em outro momento um cine drive-in com, pelo menos, parte da Mostra e uma exposição na praça para envolver a cidade”, promete a diretora da Universo Produção e coordenadora geral da Mostra de Tiradentes.
Cadeia produtiva do audiovisual passa por transformação
O audiovisual é uma cadeia produtiva que se faz na aglomeração. Dos sets de filmagem às salas de exibição tudo acontece em conjunto. E, por isso, assim como outras artes e a educação, principalmente, viu suas estruturas totalmente paralisadas e depois transformadas muitas vezes ao longo de 2020.
A realizadora paranaense Ana Johann participa com o filme “A Mesma Parte de um Homem”, da Mostra Aurora, dedicada a filmes de realizadores com até três longas-metragens. Na Aurora são sete produções inéditas de estética fortemente inventiva e realizados com poucos recursos.
“Toda crise é valiosa pra gente poder se aprofundar nas nossas questões criativas e também nas de orçamento. Nosso filme é um projeto muito longo, o roteiro começou a ser escrito em 2012 e a gente só foi gravar no início de 2019. Fiquei montando ao longo daquele ano e terminamos início de 2020. Começamos a nos inscrever nos festivais, mas alguns foram cancelados ou reduzidos. Estamos felizes em começar 2021 como lançamento. Tenho a impressão que o século começa agora em 2021. Antigas questões foram repensadas. Um filme custa caro. Temos que pensar como dar acesso às pessoas. A cadeia produtiva do cinema não parou só por causa da pandemia, mas por falta de políticas públicas. Eu sou roteirista, posso trabalhar de casa, mas não havia uma diretriz. A Ancine (Agência Nacional do Cinema) já estava parada muito antes da pandemia”, explica Ana Johann.
No total Tiradentes vai exibir 31 longas. Também na mostra Aurora está “Rosa Tirana”, primeiro longa do diretor Rogério Sagui. Sem conseguir entrar em editais, a produção foi bancada com recursos próprios e muita colaboração da comunidade e equipe, em Poções, no sertão baiano. A finalização da obra aconteceu em 2020.
“A pandemia nos alcançou na pós-produção, que é, talvez, a parte mais cara. A primeira dificuldade foi da verba, seguimos contando com a colaboração da comunidade. Todo mundo reduziu o valor do trabalho. Outra dificuldade foi fazer a distância. Só fiz a montagem presencial, quando ainda não tinha nenhum caso de Covid-19 na cidade. Sonorização e colorização foram feitas à distância. Não é um processo fácil, mas acho que o distanciamento pode ser uma tendência. Eu teria que ir pra João Pessoa, seria mais um custo. Não é um filme comercial. Buscamos uma distribuidora para o filme. Acho que a internet fez com os festivais chegassem pra mais pessoas, mais distribuidoras e outros festivais. Isso aumenta as nossas chances de competir pelo mercado”, avalia Sagui.
Sob demanda – Ao longo da pandemia as distribuidoras também precisaram rever sua rotina. De um lado, produções paralisadas, de outro, as salas fechadas. Junto a tudo isso, a demanda da Internet através dos modelos on-demand crescendo.
Segundo o diretor da Embaúba Filmes, Daniel Queiroz, essa é uma fase de transição que já havia começado mesmo antes da pandemia. A cadeia de exibição de cinema tem as chamadas janelas. Primeiro o filme passa pelas mostras e festivais, onde são apresentados para a imprensa. Depois as salas de cinema e as locadoras – que já não existem mais – antes da TV. Isso estava mudando nos últimos anos, acabando as locadoras e surgindo a circulação pela internet, principalmente o on-demand. A pandemia radicalizou isso sem as mostras e sem as exibições.“O grande desafio é a comercialização, como ter retorno financeiro. Até aqui a exibição no cinema era o principal meio. Os festivais on-line levam os filmes para o mundo todo e não são todos os festivais que remuneram os filmes. Eles acabam competindo com o lançamento comercial. Temos, no Brasil, o cinema mais comercial destinado ao mercado, mas a grande maioria dos filmes brasileiros não é feita nesse sentido. Esse cinema mais independente também nunca teve uma comercialização muito fácil. Em BH, por exemplo, só o Cine Belas Artes exibe esse tipo de filme. Isso não é diferente em outras capitais. Não são tantos os compradores (canais de TV). E as locações pela Internet são muito pontuais. Por outro lado, observamos na pandemia mais possibilidades de circulação na internet. Sofremos muito com a descontinuidade das políticas públicas. Existe, hoje, uma política clara contra o setor cultural. Devemos lembrar que o cinema é uma cadeia de produção industrial, que agrega gente de diferentes áreas”, analisa Queiroz. (DM)