A aquarela musical de Ary

17 de outubro de 2019 às 0h01

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Crédito: Divulgação

Cesar Vanucci *

“A atuação de Ary Barroso extravasou o ponto de vista puramente criativo.” (Jose Lino Grünewald)

O bate-papo no tradicional encontro domingueiro de amigos de muitos anos fixou-se, em dado momento, na música popular brasileira. Da fervilhante troca de impressões, intercaladas de solfejos carentes de ritmo e afinação, emergiu, ao cabo, um consenso: Ary Barroso, mineiro de Ubá, é o nome mais representativo da pujante galeria de compositores brasileiros. Sua (e nossa) “Aquarela do Brasil” é a melodia que melhor traduz o genuíno sentimento nacional. Saí da reunião comprometido a fazer um relato, neste minifúndio de papel, sobre o festejado autor e sua fascinante obra artística. Começo agora.

Nos anos 70, em fascículos quinzenais, a “Abril Cultural” presenteou o público, nas bancas de jornais, com uma primorosa “História da Música Popular Brasileira”. Cada fascículo, dedicado à vida e obra de um compositor consagrado, vinha acompanhado de um disco de 78 rotações, contendo melodias que deixaram marca profunda na memória das ruas. Estou relendo e ouvindo, com emoção, já que faço parte de um privilegiado grupo que se deu ao trabalho de montar pacientemente, há quase meio século, essa preciosa coleção, o que foi produzido a respeito do maior de nossos autores musicais, Ary Barroso.

Senti-me tentado, em vista disso, a passar para o distinto leitorado alguns dos palpitantes comentários e saborosas historietas envolvendo o compositor centenário, apresentados por renomados especialistas em música popular, recrutados pela “Abril” para compor o Conselho Editorial da publicação. Os registros ajudam a mostrar a face humana de uma figura artística fabulosa.

Para José Lino Grünewald, “a importância da atuação de Ary Barroso extravasou o ponto de vista puramente criativo. Foi um dos maiores (se não o maior) e dos mais encarniçados batalhadores da autenticidade de nossos ritmos, principalmente num período em que a bolerização ameaçava tomar conta da praça. Fez rádio e, como poucos e raros, dando uma enorme vivacidade ao microfone. Seus programas de calouros marcaram época. Sua participação no esporte, apaixonada, instigante, sacudia os torcedores, irradiando e comentando o futebol, com ardor, com mordacidade. E quando a televisão começou a ocupar sua faixa própria, lá estava ele: música, esporte, política, humorismo”.

São os biógrafos de Ary que contam ainda: no início da década de 60, o autor de “Aquarela do Brasil” se confessava descontente e amargurado com os rumos da MPB. “Nunca o samba esteve tão por baixo. Chegamos à era do bolero, do rock, chá-chá-chá, twist e outras torceduras.” Constava que, a princípio, ele não conseguia engolir jeito maneira a chamada bossa-nova. David Nasser, jornalista e compositor, seu amigo fraternal, demoveu-o de posição tão intransigente. E ele acabou sendo surpreendido, em determinada ocasião, a aplaudir “A felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais, apontando-a como uma das dez melhores canções populares de todos os tempos.

Antes de contar outros casos de Ary, retirados da mesma abalizada fonte, relaciono as faixas musicais do disco: Aquarela do Brasil, na interpretação de Sílvio Caldas; Como “vaes” você, marcha carnavalesca de 1936, cantada por Carmem Miranda; Na baixa do sapateiro, com os “Anjos do Inferno”; Maria, com Sílvio Caldas; No tabuleiro da baiana, com Carmem Miranda e Luiz Peixoto; Morena boca de ouro, na interpretação de João Gilberto; Risque, com Linda Batista; e Os quindins de Yayá, na voz de Ciro Monteiro.

Ary Barroso, como vem contado na “História da música popular brasileira”, era pessoa impetuosa. Parecia sempre pronto para enfrentar paradas em defesa de suas opiniões. Não abria mão do direito da crítica. Acabou, por força do temperamento, entrando em choque com muita gente. Aconteceu com Heitor Vila-Lôbos, outro nome de projeção artística internacional, também considerado de estopim curto. Foi assim. Ary participava de um concurso de melodias onde Vila-Lôbos era juiz. Todo mundo apostava na sua música, menos Vila-Lôbos, que resolveu conferir o prêmio ao compositor David Nasser (autor da letra de “Canta Brasil”). Ary e Vila não mais se falaram a partir daquele momento, embora David Nasser, amigo de ambos, se esforçasse por promover a reaproximação. “Voltar a ouvir aquele pilantra? Jamais!” bradava o autor de “Trem caipira”. “Não quero nada com aquele maluco!” replicava o autor de “Maria”.

Mas os dois gênios não levaram para o túmulo a desafeição. Em setembro de 1955, ambos foram convidados a comparecer ao Palácio do Catete para uma homenagem pela contribuição dada à cultura e arte. Diante da expectativa dos circunstantes, cada qual no seu canto, de caras amarradas, evitavam se olhar. David Nasser resolveu pôr fim na desavença. Chegou até o Ary e disse: “Escuta aqui, o Vila me deu aquele prêmio porque eu precisava de dinheiro para operar meu irmão”. “Você jura?”, inquiriu o autor da Aquarela. Nasser jurou. Foi o suficiente para quebrar o gelo. Ary abraçou Vila, que ainda cismou de lançar um desabafo pra cima de Nasser: “Sua letra David, era uma porcaria”.

Mais Ary Barroso no próximo comentário.

*  Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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