Ciência pública como “locomotiva limpa-trilhos”

14 de outubro de 2020 às 0h09

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Créditos: Divulgação

Maurício Antônio Lopes*

Praticamente todas as nações desenvolvidas são capazes de utilizar a ciência pública à semelhança de uma “locomotiva limpa-trilhos”, que vai à frente removendo barreiras e abrindo caminhos, com projetos de maior risco e prazos de maturação longos, que não atraem o setor privado.

A pesquisa apoiada pelo Estado é essencial na remoção de obstáculos para que empresas e indústrias encontrem caminho livre e possam gerar empregos, riqueza e progresso.  São inúmeros os avanços experimentados pela sociedade moderna na medicina, na produção de alimentos, na revolução da informação e da comunicação, no desenvolvimento de alternativas energéticas limpas etc., que só se tornaram possíveis graças aos investimentos do Estado em pesquisa científica.

Exemplo emblemático é o smartphone, que resultou de sete tecnologias-chave, desenvolvidas principalmente por institutos públicos e universidades, e habilmente reunidas no setor privado para criar uma inovação que ganhou todos os cantos do planeta.  O GPS, a internet e o algoritmo que levou ao sucesso do Google foram todos desenvolvidos a partir de financiamento público à ciência básica nos EUA.  Os princípios ativos de novos medicamentos são, na sua maioria, desenvolvidos por universidades e institutos públicos de pesquisa, e transformados em produtos por empresas farmacêuticas.

Momentos de grave crise, como o que vivemos, demonstram quão essencial é o Estado no papel de garantir a infraestrutura e a capacidade científica necessárias para se compreender e superar infortúnios.  Estudo recente estimou que em apenas seis meses — entre 1º de janeiro e 30 de junho de 2020 — cerca de 24 mil artigos científicos relacionados à Covid-19 foram produzidos, a grande maioria resultante de pesquisas na área biomédica financiadas com recursos públicos.  Esse esforço sem precedentes acelerou a geração de conhecimentos e a busca por tratamentos e vacinas para conter a transmissão do novo coronavírus, com vários candidatos promissores produzidos em tempo recorde.

Ainda assim, há governos que insistem em ignorar a importância da ciência, muitos considerando os investimentos em infraestrutura de pesquisa e inovação um luxo de alto custo e não um investimento estratégico, promotor de progresso e de resiliência na sociedade.  Até uma das maiores potências tecnológicas, os EUA, tende a perder a hegemonia em financiamento à pesquisa básica, que alavancou a vantagem competitiva da indústria e o crescimento do PIB americano desde a Segunda Guerra Mundial.  O contrário ocorre em países como a Coreia do Sul, Emirados Árabes, Índia e China, este último com investimentos massivos em ciência — US$ 280 bilhões em 2017, o que equivaleu a 2,12% do gigantesco PIB do país e a 20% do total das despesas mundiais com pesquisa e desenvolvimento.

O fortalecimento da ciência no ambiente público e a promoção de parcerias público-privadas para recuperação do setor industrial são desafios críticos para o Brasil, que precisa mais do que nunca ampliar a criatividade econômica e a complexidade industrial, transformando seu enorme sucesso na produção de commodities —  minério, petróleo e produtos agropecuários — em plataformas de conexão com cadeias produtivas mais nobres, de alto valor agregado.  Por exemplo, diversificar, especializar e agregar valor à produção agropecuária nacional é, mais do que uma necessidade, um imperativo para o futuro, e missão possível de se alcançar,  considerando que países de alta complexidade industrial, como Canadá, Alemanha, França, China e EUA, conseguem fazê-lo, valorizando e protegendo, com todos os instrumentos possíveis,  seus setores agrícolas.

O Brasil pode ir além, levando em conta as vantagens extraordinárias que possui para inserção na emergente bioeconomia, a economia de base biológica, renovável e sustentável.  O País já é líder global na produção de energia de biomassa e dá passos robustos na produção de bioinsumos e químicos renováveis.  Recentemente os jornais noticiaram que a empresa brasileira Marfrig — uma das maiores processadoras de carnes do mundo — lançou uma inovadora linha de “carnes carbono neutro”, a partir de sistemas de produção que integram lavoura, pecuária e floresta e neutralizam as emissões de gases de efeito estufa, de acordo com protocolo desenvolvido pela Embrapa.  O projeto, considerado de alto risco no nascedouro, foi bancado com recursos públicos, e agora dá à indústria brasileira a inédita capacidade de responder a mercados ávidos por uma produção pecuária de baixo impacto ambiental, em perfeita sintonia com a economia renovável de baixo carbono.

Esses são apenas exemplos na longa lista de avanços possíveis para inserção do Brasil na economia de base biológica, capaz de alavancar segmentos vitais como a produção de alimentos, a saúde, e as indústrias química, de materiais e de energia.  A bioeconomia poderá ainda projetar o nosso patrimônio mais conhecido, a Amazônia, como grande produtora de riqueza, progresso e bem-estar.

No entanto, para que isso aconteça, o Estado precisa empreender e operar na qualidade de um tomador de riscos, mobilizando bancos de desenvolvimento, universidades e institutos de pesquisa como “locomotivas limpa-trilhos” habilitadas a lidar com a incerteza subjacente aos processos de inovação e com a crescente complexidade que marca o nosso tempo e aplaca a ousadia do setor privado.

*Pesquisador da Embrapa. mauricio.lopes@embrapa.br

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