Doar não transforma

23 de agosto de 2019 às 0h01

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Crédito: Divulgação/TV Globo

Tilden Santiago *

A campanha Criança Esperança, da Rede Globo, chega aos olhos, ouvidos, à inteligência e ao coração de todos nós, os milhões de brasileiros, que, de cara, nos sensibilizamos com o belo gesto da gigantesca emissora, beneficiando jovens, apresentado por dignos artistas, certamente os mais amados da plebe: crianças, jovens, adultos e idosos, pobres e ricos, homens e mulheres, negros, brancos, amarelos e indígenas. Ela é mais do que um enorme fantástico, mexendo com o coração sensível e apaixonado de todos os filhos da Terra de Santa Cruz. Mexe mais do que o programa de arrecadação de doações do SBT (Teleton) de Silvio Santos em benefício da AACD, a qual, a maioria da população não conhece tão bem mas arrecada mais que a campanha da Globo. De acordo com dados divulgados em 2018, Teleton/SBT/ACCD recebeu mais de R$ 30 milhões em doações, enquanto Criança Esperança/Rede Globo arrecadou mais de R$ 17,7 milhões.

A campanha Criança Esperança nos leva a pensar a Nação brasileira como alvo, ou de doação ou de transformação, embora esses dois conceitos não sejam antagônicos.

O cientista norte-americano, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autor best-seller Jared Diamond acaba de lançar seu mais recente livro: “Upheaval: Turning Points for Nations in Crisis” (“Reviravolta: Momentos Cruciais de Nações em Crise”), precioso a meu ver, que ainda não foi traduzido da língua de Shakespeare. Na obra publicada em maio desse ano, Diamond tenta demonstrar que existe uma relação profunda entre cada indivíduo e sua nação. Um prato especial para psicanalistas e psicólogos de todos os matizes.

Segundo esse cientista, a gente só entende bem a crise do indivíduo depois que entendeu bem a crise da nação – e vice-versa. Talvez seja por isso que esse escriba gosta muito das análises políticas e sociais do pessoal amigo de Freud, especialmente de meu irmão lacaniano roxo, o Doutor e professor Jésus Santiago, da UFMG. Eles captam, frequentemente, aspectos que cientistas políticos e economistas, mesmo famosos, não percebem.

Tanto o indivíduo como a nação se arrastam na crise, quando começam a vegetar sem uma referência maior de sua caminhada histórica no Planeta Terra. E também quando perdem sua própria identidade histórica. Sem referência maior e sem identidade, ninguém avança, nem um indivíduo, nenhuma nação: caímos na apatia, no desinteresse, na inércia ou nos contentamos com posturas e investidas isoladas, individualistas, voluntaristas, que pouco ou quase nada contribuem para a História.

A “doação” é um gesto nobre, mas sozinha, isolada da “transformação”, é algo insuficiente para se alcançar o amadurecimento do Humanismo Integral. Pode até satisfazer o apetite individual e tranquilizar momentaneamente a consciência diante das injustiças e da desigualdade, mas dificilmente levaria o gênero humano a uma plenitude que sua Natureza e o Universo tanto anseian.

E é por isso que Paulo de Tarso insistia em dizer que era preciso “combater o bom combate sempre” e fazer bem todas as coisas para que o sonhado “Parto do Universo” aconteça.

Na História Universal, na Filosofia, o espírito revolucionário e a revolução sempre foram considerados fatores capazes de levar o homem e a mulher a não se diminuir e a superar no bojo das crises cíclicas e históricas ou na vivência opaca de um cotidiano sem grandeza, as trevas e os caminhos pedregosos e conturbados a serem percorridos.

A revolução foi a resposta “temporária” e imediata até hoje que o homem criou. Os tempos passaram e a revolução, como remédio eficaz para a Humanidade também passou. Com o fim da Guerra Fria, com o arsenal bélico nas mãos de poucos, com o ocaso do socialismo real, com a dominação e a opressão ganhando novas formas sobre os pobres, com a globalização e com os riscos ecológicos à vista, fazer revolução hoje tornou-se inviável para os mortais debaixo do Sol, da Lua e das estrelas. Saudades dos Che Guevaras da História.

É nesse contexto que emerge o conceito de “Transformação” – da mente, da luta, da vida e da autocrítica de Edgar Morin, um revolucionário que conheci em Paris – “indignado”, aos 98 anos líder inconteste dos Movimentos dos Indignados na França e na Espanha, em toda Europa e nos EUA. Mas essa é uma história para outros artigos ou livro. Dificilmente Edgar Morin e seus seguidores, entre eles esse escriba, com sua visão de mundo centrada na “Transformação”, entenderão a Campanha Criança Esperança com facilidade.

*Jornalista, embaixador e filósofo

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