Neoliberais X desenvolvimentistas

22 de outubro de 2020 às 0h14

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Crédito: REUTERS/Amanda Perobelli

Mauro Rochlin*

Em reação à paralisação forçada da economia, a adoção de políticas fiscais fortemente expansionistas, por parte de todos os países, se tornou a regra. Como a dívida pública experimentou uma alta muito expressiva, até mesmo desafiando a estabilidade macroeconômica de alguns países, uma questão crítica se destaca: qual a potência dessas políticas?

Conhecer as ideias que fundamentam essas políticas pode ajudar a refletir sobre o tema. O debate acerca da eficácia das políticas macroeconômicas tem nas ideias liberais e, alternativamente, na teoria keynesiana as suas principais referências. De um lado, Smith, Hayek, Friedman e os chamados neoliberais defendem a liberalização dos mercados, o livre comércio e a ampla concorrência.

Para eles, o livre funcionamento da economia, sem a intervenção do Estado, faria com que o processo produtivo acontecesse de forma mais eficiente. Sem a regulação estatal, sustentam os liberais, o ambiente concorrencial seria privilegiado, e isso se traduziria em maior produtividade. Nessa linha, a conclusão é que, com mais liberdade de mercado, haveria maior crescimento econômico.

Em oposição a essas ideias, os desenvolvimentistas, sob a dianteira de John M. Keynes, indagam sobre as agudas oscilações de mercado que, com frequência, perturbam as economias. A premissa keynesiana é que crises econômicas ocorreriam de forma cíclica, pois haveria um hiato recorrente entre a renda gerada no processo produtivo (oferta) e o gasto direcionado ao consumo (demanda). Como esse hiato não seria coberto pelo investimento privado, haveria uma tendência crônica ao desequilíbrio. A oferta e a demanda estariam endogenamente desbalanceadas. É nesse contexto que Keynes propõe uma atuação estatal estratégica. De modo a impedir o descasamento entre oferta e demanda, o Estado teria uma missão compulsória: investir. Sob essa perspectiva, políticas fiscais e monetárias ativas seriam bem vistas.

Ao longo de quase quatro décadas (1940-1980), o pensamento keynesiano ocupou papel de destaque na elaboração de políticas públicas em todo o mundo. Sob o pretexto de assegurar maior solidez de demanda, a política macroeconômica ganhou relevância, fortalecendo, cada vez mais, a intervenção do Estado na economia. Em particular na América Latina, essa maior presença se deu sob o argumento de que uma crônica carência de capital privado tornaria duplamente necessária a ingerência do Estado na economia.

A despeito do relativo sucesso dessas políticas, a partir da década de 80 uma crítica cada vez mais robusta passou a apontar o desequilíbrio fiscal crônico, a excessiva regulação dos mercados e a aplicação de políticas comerciais protecionistas como fatores responsáveis pela ocorrência de crises econômicas recorrentes.

Essa análise também frisava que, principalmente nas economias emergentes, o uso de políticas fiscais ativas havia favorecido o surgimento de um setor industrial muitíssimo concentrado, fortemente protegido da concorrência externa e muito pouco competitivo. Os neoliberais apontavam, ainda, o elevadíssimo endividamento público como sinal de esgotamento do próprio modelo intervencionista.

Inicialmente sob a liderança de Reagan e de Tatcher, a política macroeconômica dos países centrais passou a adotar uma postura cada vez mais austera, no âmbito fiscal, e cada vez mais flexível na esfera regulatória. A partir da década de 90, uma onda de políticas de inspiração neoliberal varreu a Europa, a América Latina e o Sudeste Asiático. Programas de privatização, acordos de liberalização comercial e financeira e novos protocolos de redução de normas de regulação se constituíram então nas principais iniciativas de política governamental. As principais economias, e mais fortemente as economias emergentes, passaram a registrar altas taxas de crescimento econômico. No início do século XXI, um vigoroso ciclo de expansão econômica, turbinado pelo dinamismo das economias emergentes, parecia validar as propostas de desregulamentação.

Apesar de seguir crescendo a um ritmo acelerado, a economia mundial voltou a enfrentar novas turbulências. E, mais uma vez, a intervenção do Estado se revelou indispensável.  Em 2008, a superação da crise financeira global contou com o decisivo uso da política fiscal. No atual contexto, claro está que o aumento do gasto público também tem sido a resposta. Todos os países fizeram uso extremo da política fiscal. Portanto, a questão crucial é: pode-se dispensar a ajuda do Estado? Se não, qual o limite da política fiscal?

Considerando a proximidade temporal dos eventos relatados, o debate ainda encontra-se em construção. Afirmar a superior eficiência do mercado no emprego de recursos ou, em contraponto, defender a intervenção estatal como garantia de crescimento econômico é ignorar que a validade dessas premissas ainda depende do crivo da história. Os desafios que a atual crise levanta colocarão à prova, mais uma vez, as propostas dos dois lados.

*Doutor em Economia e professor da Fundação Getulio Vargas

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