O Corvo (XXXVII)

24 de agosto de 2019 às 0h01

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Crédito: Divulgação

— Parece que é um ataque cardíaco — diz uma das pessoas que correram ao me ver cair.

Alguém vá até a portaria do hospital e peça socorro — continua ele, apontando para o Hospital Militar Val-de-Grâce, a poucos metros de onde estou.

O socorro chega em menos de cinco minutos. A filmagem em plano geral mostra uma pequena multidão em volta do meu corpo, e um corvo sobrevoando a área. A equipe de socorristas pede que se afastem. Quando chegam até onde estou, colocam-me uma máscara de oxigênio e eletrodos para fazer um eletrocardiograma. Logo em seguida, já em uma maca, levam-me para a ambulância, que sai a toda velocidade. Com o traçado eletromiográfico em mãos, um dos assistentes lê em voz alta: elevação nova do segmento ST no ponto J em duas ou mais derivações contíguas (> 0,2 mV em precordiais e > 0,1 mV em periféricas). Bloqueio de ramo esquerdo (BRE) novo ou presumivelmente novo. Injetam qualquer coisa na veia de meu braço. Finalmente chegam ao hospital e me levam para a UTI.

A transmissão do filme é interrompida. As luzes do cinema se acendem. No local, como sempre, apenas dois espectadores: a mulher ao meu lado com um véu na cabeça, que eu não conseguia identificar, e eu. Ela lentamente vira o rosto em minha direção e retira o véu, deixando-me ver seu rosto. Embora àquela altura nada mais me surpreendesse, sou traído pelas minhas feições, ao mostrar um semblante assombrado. A mulher, até então irreconhecível, era a mesma mulher de rosto quase translúcido que aparecia em todas as outras situações em que eu estava à beira da morte.

— Até agora só me importava saber se estava ou não morto; mas agora, confesso, fiquei muito curioso. Quem, afinal, é a Sra.?
— Sou alguém que você salvou há muitos séculos atrás.
— Quer dizer, então, que eu tive uma outra vida?
— Não, uma não, foram várias, mas não importa. Para pagar a minha dívida, salvei-o da morte em várias ocasiões; ao nascer, quando sua mãe foi baleada com você em seu ventre; do cão raivoso que, como um vampiro desejoso de sangue, cravou os dentes em seu pescoço; do filho de sua mãe de leite, que por ciúmes tentou sufocá-lo; e no momento em que, ao mergulhar naquele rio, você desmaiou, pois bateu com a cabeça em uma pedra. Mas agora, sendo você adulto, já não posso fazer mais nada.
— O que significa que irei, agora sim, morrer.
— Não necessariamente. A partir de agora estará em suas mãos a vontade de continuar vivo. Nessa vontade está a energia que poderá salvá-lo. E mais não disse. A luz se apagou. Na tela, a palavra FIM.

*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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