De um modo geral, a mídia brasileira não deu muita atenção. O “Estado de São Paulo”, num pequeno espaço chamou a atenção para a baixa participação do eleitorado na eleição chilena do dia 16 de maio último, o que significaria, portanto, dificuldades à vista para os vencedores. No entanto, há que se reconhecer que um sopro de esperança nos vem das terras chilenas! Há um vento novo que sopra na América Latina, castigada há anos por uma política avassaladoramente negativa, herdeira de regime totalitário e neoliberal resultante dos golpes militares e das ditaduras que os seguiram. Bolívia, Argentina e agora o Chile, onde, finalmente, as forças progressistas que tentavam se organizar desde os protestos de 2017 e 2019, conseguiram se unir e a direita ─ tanto a extrema direita quanto a do centro ─ foi derrotada, rechaçando-se a ditadura sem disfarce do capital, adotada por Pinochet, sob a assistência direta de Milton Friedman, Friederich Hayek e escola de Chicago ─ os pais do neoliberalismo ─, antes mesmo de Margaret Tatcher e Ronald Reagan apostarem no novo sistema.
As eleições do dia 16 de maio trouxeram uma grande mudança na composição das forças que integram a Assembleia Constituinte do Chile, responsável pela elaboração de uma Nova Constituição. A começar pelos povos indígenas, que, pela primeira vez, conseguiram assegurar uma presença significativa com 17 cadeiras, num total de 155; e mais: as mulheres conseguiram a maioria, com 83 cadeiras, até então elas eram apenas 35 entre 144 parlamentares. A esquerda conseguiu a bancada mais numerosa (52); e a ela se junta, em termos de visão e prática política, os independentes, que apesar de que não tenham querido se identificar com o partido da esquerda tradicional, estão juntos. Entre eles está a Lista do Povo, que, representando o povo, “que sempre lutou por dignidade e justiça” é um resultado das articulações possibilitadas pelos protestos de 2017 e 2019. A Lista do Povo elegeu 27 delegados, mulheres e homens. A direita ficou com 38 cadeiras, o que representa apenas 1/3 das cadeiras, o que, em consequência, não lhe permite bloquear as decisões mais progressistas do grupo agora no poder. Nesse contexto, o único fator mais preocupante foi a pequena parcela do eleitorado a votar: apenas 40%. O que não deixa de ser significativo e um risco para a democracia, que se enfraquece com a não participação total de seus cidadãos no processo de escolha de seus dirigentes e na participação na condução da vida política.
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Esse resultado foi conseguido pela articulação dos movimentos sociais protagonistas dos protestos dos anos anteriores, que foram às ruas e não aos gabinetes e que não estavam, necessariamente, subordinados aos partidos de esquerda. O interessante é que esses protestos tiveram início com um motim secundarista contra o aumento das passagens do metrô, que acabou por englobar outros setores da sociedade civil e outras críticas à política do governo, como por exemplo, a mercantilização da vida, o projeto de previdência privada que onerava os mais idosos com uma aposentadoria miserável, o custo exorbitante do ensino e a crescente e cada vez mais explosiva desigualdade social. Nesse momento a resposta do governo também foi visceralmente violenta. Mas lá, a repressão, a brutalidade e a barbárie policial multiplicaram o alcance dos protestos e a solidariedade da população (Antônio Martins, in Outras palavras, Quatro chaves para pensar a primavera chilena, 26/10/20).
Essas eleições, que não deixam de ser um rechaço ao neoliberalismo, abrem uma nova era: o processo constituinte será encaminhado pelas esquerdas e pelos independentes e espera-se uma transformação profunda nas práticas econômicas, sociais e culturais do país. A liberalização e desregulação da economia, a primazia dada ao mercado na regulação da vida econômica e social, a privatização das empresas públicas, a livre exploração e comercialização dos recursos naturais e o consequente desgaste do meio ambiente, a prática corrente de diminuição dos impostos dos mais ricos, o desrespeito aos direitos trabalhistas, econômicos, sociais e culturais da população, entre outras características fundamentais do neoliberalismo, trouxeram como resultado não só uma concentração jamais vista da riqueza e um empobrecimento crescente das classes trabalhadoras, num processo de exclusão cada vez maior dos setores à disposição do capital, como um crescente processo de repressão e violência, de militarização das forças policiais, de modo a intimidar o trabalhador e impedir a sua organização e manifestação. (No Brasil, um exemplo recente: a chacina na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro).
Esperemos, portanto, que aqui também esse sopro de esperança nos traga inspiração, força e a articulação devida para a transformação necessária e um novo modelo de sociedade, onde os direitos humanos sejam inteiramente respeitados, onde a nossa soberania e independência econômica seja assegurada em prol do crescimento e desenvolvimento econômico do País.