VIVER EM VOZ ALTA | “Essa gente”, de Chico Buarque

7 de fevereiro de 2020 às 0h04

img
Crédito: A. PAES / divulgação

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

Fundamental para entender a cultura brasileira da segunda metade do século vinte, o estudo da obra de Chico Buarque de Holanda exige um olhar profundo e elegante, que esteja disposto a alçar-se à altura em que se situa. Filho de Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico “Raízes do Brasil” e parente de Aurélio Buarque de Holanda (primo de seu pai), filólogo e lexicógrafo inesquecível, que nos legou o famoso ‘Dicionário Aurélio’, Chico herdou de sua linhagem uma aguda habilidade para compreender as estruturas sociais e políticas, uma inegável sofisticação vocabular e um absoluto domínio de seu ofício. Seu trato com as palavras – como acontece com os grandes criadores – acabou contribuindo para renovar a potência do idioma, confirmando a imensa capacidade de expressão da língua.

Vencedor do respeitado Prêmio Camões de 2019, Chico Buarque será lembrado como um dos mais notáveis artistas brasileiros de todos os tempos. Sua densa e vasta produção como compositor inclui canções eternas como “Pedro pedreiro” (1965), “A banda” (1966), Apesar de Você” (1970), “Construção” (1971) e “Cálice” (1973). São de sua lavra peças teatrais como “Roda Viva” (1968), “Calabar” (1973), “Gota D’água”( 1975), e “Ópera do Malandro”(1979), quando apresentou ao público a travesti Geni, um de seus tipos mais marcantes.

A dedicação à música e ao teatro, no entanto, não o impediu de também enveredar, com êxito, pelos caminhos da literatura. A estreia de Chico em livro se deu em 74, com a novela “Fazenda Modelo”. Depois, vieram os romances “Estorvo” (1991), “Benjamim”, (1995), “Budapeste”, (2003), “Leite Derramado” (2009), “O irmão alemão” (2014), e, agora, “Essa Gente”, que li em poucos dias, como se passou com os demais livros.

Sedutor, “Essa gente” conduz os leitores pelo universo de Manuel Duarte, um escritor às voltas com duas ex-mulheres, algumas namoradas, um filho pré-adolescente, problemas financeiros e uma carreira literária em decadência. O pano de fundo é formado pelo bairro do Leblon e a paisagem urbana do Rio de Janeiro, em toda a sua complexidade. Não ficam de fora referências à violência (em suas diferentes formas e seus múltiplos agentes), à desigualdade social, à expansão do poder das igrejas e ao acirramento de ânimos que caracteriza o país hoje, dividido entre a aposta na civilização e o poder da barbárie. É emblemática a cena em que o personagem Fúlvio Castello Branco, advogado de prestígio, espanca um mendigo encostado no muro do Jockey Clube, de onde Fúlvio é sócio: “Acerta-lhe um pontapé nos rins, e depois de um chute nas fuças deixa o homem estatelado e arquejante no meio da calçada. Mal o Fúlvio vira as costas, o índio velho rola devagar no chão e volta a se ajeitar com a bunda no muro do clube” (pp. 47- 48).

A narrativa não é contada de modo linear. Ela vai e volta no tempo. Não há apenas um narrador, mas vários, incluindo um que fala em terceira pessoa. Os textos são reunidos sob as datas de sua elaboração, quase todas de 2019, o que comprova o quanto o livro fala do Brasil contemporâneo. Vários deles são apresentados como se fossem cartas. Uma de suas reflexões principais é justamente sobre o processo da escrita e as fronteiras, muitas vezes embaralhadas, que ela estabelece entre ficção e realidade. É livro que vai ficar.

*Jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras

Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

Siga-nos nas redes sociais

Comentários

    Receba novidades no seu e-mail

    Ao preencher e enviar o formulário, você concorda com a nossa Política de Privacidade e Termos de Uso.

    Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

    Siga-nos nas redes sociais

    Fique por dentro!
    Cadastre-se e receba os nossos principais conteúdos por e-mail