Empresas deixam a concorrência de lado para formar os “cartéis de crise”
1 de maio de 2020 às 0h15
A pandemia causada pelo novo coronavírus, que levou às medidas de isolamento social pelo mundo todo, modificou, de uma hora para outra, todo o funcionamento das cadeias produtivas. Em busca de soluções para sobreviver à crise e sair minimamente preparados para o futuro, empresas buscam parcerias e, quem antes era visto como concorrente, pode passar a parceiro estratégico.
Para se protegerem, setores se articulam e a formação de cartéis, embora seja uma prática proibida no Brasil, pode ser novamente observada. Há, porém, a possibilidade da criação dos chamados “cartéis de crise”. Em tese, os cartéis permitem às empresas perpetradoras se apropriarem dos ganhos da ausência de competição em detrimento da base consumidora, principalmente sob a forma de preços mais elevados.
O cartel de crise se caracterizaria, porém, excepcionalmente, pelo grau de mobilização e o nível de eficiência gerados pela coordenação entre agentes econômicos de um setor ou conjunto de setores. Dessa forma, estaria garantida a subsistência das empresas e, consequentemente, do setor.
Dentro desse turbilhão de informações e a necessidade de tomada de decisões muito rápidas, é preciso discernimento para separar uma coisa da outra. Preocupada, a Comissão de Direito da Concorrência da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Minas Gerais (OAB/MG) promoveu, no dia 30, o webinar “Competition Talks: Antitruste em tempos de Covid-19”.
Foram convidados o professor, membro honorário da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG e ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), João Bosco Leopoldino da Fonseca, e a vice-presidente da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG e ex-secretária de Direito Econômico, Elisa Ribeiro.
O evento foi mediado pelo presidente da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG, Paolo Zupo Mazzucato. Para ele, o cartel de crise é uma figura válida mas que depende de condições específicas.
O caso das companhias aéreas no contexto do Covid-19 seria exemplar. Sem conseguir voar na fase aguda da crise com um uma perspectiva de grande demora para a retomada da performance aos níveis anteriores à pandemia – algo em torno de cinco anos, segundo as previsões de alguns executivos – para elas a solução seria viável.
Segundo presidente da Latam, Jerome Cadier, a previsão de queda na demanda do transporte aéreo após a pandemia pode ser de 30% a 40%.
“O cartel de crise é uma plano de reestruturação de um determinado setor que atravessa uma crise estrutural muito grave. As empresas querem estabelecer um plano de redução de capacidade produtiva para atender um mercado que já não demanda como antes. O nome cartel de crise talvez seja responsável pela dificuldade em lidar com o tema”, explicou Mazzucato.
Para a vice-presidente da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG, a formação do cartel de crise pode colocar em risco os direitos do consumidor. “O problema é quem vai pagar essa conta. Me preocupa conseguir não repassar tudo para o consumidor. Vejo problemas concorrenciais graves especialmente com a eliminação de concorrência. É necessário deixar o mínimo de concorrência no mercado. Não se gera eficiência no monopólio”, argumentou Elisa Ribeiro.
Do outro lado, a excepcionalidade da crise faz com que a ideia seja bem vista pelo ex-conselheiro do Cade. “A concorrência existe para compatibilizar as ações entre pessoas, sejam físicas ou jurídicas. É preciso que as empresas sobrevivam. Tudo, claro, precisa ser feito com extremo cuidado, dentro de condicionantes técnicas muito bem traçadas, mas o que mais importa é salvarmos as empresas nesse momento”, contrapôs Fonseca.
Prestação de serviços – Os especialistas também debateram sobre possíveis intervenções mais rápidas e diretas na relação entre prestadores de serviços e consumidores como o tabelamento de preços e políticas de concessão de descontos lineares.
O exemplo mais explícito nessa fase aguda da crise gerada pelo Covid-19 no Brasil é a relação entre instituições de ensino e pais de alunos. Essa relação, segundo Mazzucato, é alvo de, pelo menos, 50 projetos de lei – em nível federal, estadual e municipal – prevendo a concessão de descontos lineares e compulsórios durante o tempo da pandemia.
Nesse caso o consenso foi pela maior efetividade da negociação individual. “De tempos em tempos o controle de preços aparece como uma solução milagrosa no Brasil, mas não vejo justificativa. Existe uma dificuldade muito grande de definir qual é o preço justo.
O controle de preços pode ter um efeito negativo. Em termos de crise, em que se tem um aumento de demanda para determinados produtos, o que pode acontecer no curto prazo é determinar o desabastecimento. Em médio prazo restringir a concorrência é também restringir a possibilidade do mercado apresentar o preço justo”, defendeu a vice-presidente da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG.
“Quem apresenta um projeto desses, desconhece direito de concorrência. O problema não é a crise, é o desarranjo da realidade. O ponto fundamental é que se enfatiza a necessidade do diálogo. Eu não posso impor à escola um desconto obrigatório. Sabemos que o maior custo de uma escola é com pessoal, então o custo com a estrutura que ela não está arcando é pequeno na comparação com o todo. Como ela vai pagar os professores e os outros funcionários? Os professores são consumidores, todos somos consumidores. Nessa situação tem que haver liberdade para que a economia continue acontecendo”, completou o ex-conselheiro do Cade.
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