Pode-se dizer – sob o risco de algum exagero, mas com a certeza do sentimento que correu pelo mundo -, que o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, foi o “dia em que a terra parou”. A doença, posteriormente batizada como Covid-19, impôs uma mudança radical na vida da população do planeta e atingiu os sistemas de saúde em cheio, independentemente do modelo adotado em cada país.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi posto à prova e demonstrou a sua gigantesca importância e capacidade, e a saúde privada respondeu ao seu papel social. Tudo isso demandou um esforço inédito e que deixou claro o papel da governança dentro dos hospitais e outros equipamentos de saúde.
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A reorganização de processo, redesenho de fluxos, contratações de emergência, quebra nas cadeias de suprimentos, somados ao próprio desconhecimento sobre a doença naquele momento e o volume avassalador de doentes chegando – boa parte deles em estado crítico -, vão ficar na memória dos gestores para sempre e, de uma vez por todas – espera-se – indicar o caminho da governança corporativa para essas instituições.
Segundo o organizador do livro “Governança corporativa em saúde: temas para um novo cenário competitivo”, Fernando L Alberto, o tema da governança corporativa dentro dos equipamentos de saúde ainda é relativamente recente e a pandemia mostrou que aqueles que estavam mais organizados se saíram melhor tanto no aspecto clínico de atendimento aos pacientes como na sustentação do negócio, sendo entidades públicas ou privadas.
“No geral, as instituições de saúde são muito focadas na parte assistencial e a gestão é pouco profissionalizada. Claro que existem exceções e Minas Gerais apresenta alguns dos melhores cases do Brasil tanto na área pública como na privada. Outro ponto que pesa é ainda a aura de sacerdócio em torno da medicina, o que faz com que seja ‘feio’ falar em dinheiro, mas as contas precisam ser pagas para que as instituições permaneçam de pé e prestem o melhor serviço”, aponta Alberto.
A obra, lançada pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), no início de abril, é dividida em quatro partes com artigos assinados por profissionais com experiência na liderança das estruturas de governança das empresas de saúde, do mundo acadêmico e da esfera da saúde pública.
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“Quando a pandemia chegou era um volume tão grande de decisões para serem tomadas em pouquíssimo tempo, que o ajuste demorou e isso custou caro às empresas. As que estavam bem preparadas, com um conselho de administração atuante, tinham estruturas para mapear os riscos, mas elas eram a minoria”, explica.
Do caos ao exemplo
E foi exatamente por caminhar na trilha da governança corporativa já há alguns anos que a Santa Casa de Belo Horizonte (SCBH), que esteve à beira da falência nos anos 2000, superou as dificuldades, suportou o volume de atendimentos com excelência no atendimento à Covid-19, sem abandonar as demais demandas, e se tornou um dos hospitais de referência nacional no combate ao Sars-CoV-2.
Criadas no Antigo Regime Português e trazidas para o Brasil Colônia, as santas casas de misericórdia são instituições filantrópicas acostumadas a atender a população mais carente. Há 122 anos na Capital, instalada no bairro Santa Efigênia (região Leste), a SCHB passou os últimos dois anos praticamente dividida em dois hospitais, um para a Covid-19 e outro para os demais atendimentos.
Para cumprir a decisão de não deixar ninguém sem atendimento, além de converter leitos e mudar todo o fluxo de pacientes dentro da instituição, a Santa Casa BH precisou contratar. O quadro de funcionários cresceu 11,4%, ganhando profissionais mais especializados, portanto, com maior remuneração.
Ao mesmo tempo, os preços de insumos – medicamentos e equipamentos – boa parte deles cotados em dólar, também disparou. Itens básicos chegaram a ter um aumento de 1.000% no primeiro ano da pandemia.
De acordo com o diretor Jurídico, de Governança e Planejamento da SCBH, João Costa de Aguiar Filho, o desempenho do grupo durante a pandemia deu visibilidade a um longo processo de construção de uma governança capaz de suportar a complexidade de um dos maiores centros de saúde do Brasil, capaz de receber pacientes de todo o País com atendimento de excelência, quase todos pelo SUS.
“Implantar governança corporativa é uma decisão estratégica e não se faz por decreto. Estou aqui desde a montagem da equipe em 2003, quando a situação era falimentar. Nós ainda temos muito por fazer, mas a palavra sustentabilidade é um pilar da instituição. Montamos um sistema de governança considerando a nossa realidade de grandes dificuldades. Durante muito tempo liderei o jurídico, quando a auditoria foi criada, depois o programa de qualidade e governança. As santas casas têm uma cultura secular, com o princípio do mercantilismo de suportar o movimento do comércio e da indústria que começavam a crescer. Essa característica muda para o que é hoje, uma grande prestadora de serviços contratualizados – seja com o SUS, convênios ou particulares. É uma criação de cultura para que nos apresentemos como uma instituição profissional. Temos que fazer uma grande mobilização interna no sentido da reorganização, do planejamento, do processo decisório ser regular. Não somos uma empresa, somos uma instituição sem fins lucrativos. O nosso propósito de melhorar a vida das pessoas tem que ser desdobrado em cada uma das nossas ações. Fazendo o exercício de compreender o nosso papel, a palavra resultado cai bem. Resultado é o equilíbrio entre as nossas contas, o serviço realizado de forma íntegra, e a responsabilidade social e ambiental”, afirma Aguiar Filho.
Em dezembro de 2021, a Santa Casa BH foi eleita, pelo quinto ano consecutivo, como uma das 100 melhores ONGs do Brasil. O prêmio é promovido pelos institutos O Mundo que Queremos, Doar e pelo Ambev Voa. Considerado o maior reconhecimento do terceiro setor no País, a honraria reforça a transparência e as boas práticas de gestão do maior hospital filantrópico 100% SUS de Minas Gerais.
Apesar dos reconhecimentos, a questão do financiamento das despesas ainda é um tema preocupante. “É bom ressaltar que em Belo Horizonte o SUS estava organizado e chegou ao limite do caos. O relacionamento da gestão com os hospitais de referência possibilitou que o enfrentamento da doença na cidade e entorno tenha sido satisfatório como os números apresentam. Na virada dos anos de 2010 – em um acordo com a PBH – instituímos o programa 100% SUS. Não havia nenhum hospital nessas condições. Esse hoje é um programa nacional. É como se estivéssemos começando sempre, mas alterando o ciclo para dar passos mais firmes e com mais agilidade. Os pilares da governança tem que ser cada vez mais disseminados. Para isso precisamos de um planejamento estratégico bem definido e identificado pela instituição”, define o diretor Jurídico, de Governança e Planejamento da SCBH.
Mater Dei criou processos de decisão sólidos
Redirecionar a cultura e ter como guia as boas práticas da governança corporativa é um esforço hercúleo no sistema público de saúde, mas não é menos penoso na iniciativa privada, especialmente nas empresas familiares. No Grupo Mater Dei os resultados e a gratificação se mostram dignos do volume de trabalho empreendido nas últimas décadas nessa caminhada.
Segundo o diretor de Operações do Mater Dei, José Henrique Salvador, o entendimento de que era necessário implementar uma governança familiar para que a governança da rede desse certo foi fundamental para o sucesso da empreitada que levou o hospital a realizar o IPO no ano passado.
“Não foi fácil. Existem alguns tipos de governança e como somos uma empresa familiar, esses tipos são intrincados. Tem a governança familiar, que permeia as relações dos acionistas, principalmente. Até abril de 2021, antes o IPO, a família era dona de 100%. Agora é de 70% da empresa. Por ser majoritária, sabemos que a governança da família ajuda na saúde do negócio. Depois a governança de gestão na instituição. Fomos criando, com a ajuda Fundação Dom Cabral (FDC), processos de decisão muito sólidos. Primeiro foi a criação de uma estrutura de governança que espelhasse as nossas necessidades e suportasse a nossa razão de ser: o atendimento às pessoas. E que desse conta do senso de urgência, do foco no paciente, da proximidade da operação, além de uma centralidade nas decisões quando necessário. Essa figura é fundamental para dar as diretrizes e autonomia para os demais líderes. Temos um conselho de administração atuante, formado por pessoas de outras indústrias e instituições da saúde, que valida as decisões. Essa estruturação foi sendo aprimorada e tivemos sorte de ter uma segunda geração que conseguiu se manter firme no ritmo que precisávamos, fomentando aspectos de governança e que sabe cobrar das pessoas”, destaca Salvador.
Em ritmo acelerado de crescimento desde o início do ano passado, com aquisições em Minas e no Nordeste, a rede também aposta em tecnologia e inovação aberta. Durante a pandemia o relacionamento com o SUS e empresas de tecnologia reforçaram o papel social da empresa ao se posicionar diante de problemas que afligem toda a população e não apenas os seus pacientes diretos, além da comunidade médico-científica.
“A busca pela sustentabilidade financeira entregando valor cria um círculo virtuoso. Durante o período da Covid-19 os avanços tecnológicos foram muito explorados e potencializados. Ao mesmo tempo, tivemos rupturas que escancaram os desafios logísticos. Tivemos aumento de custos de materiais e medicamentos surpreendentes, de 10 centavos para quatro reais em um mês. E ficou clara a fragilidade da indústria local. Liderados pelo Dr Henrique Salvador, nos juntamos à Tacom para desenvolvermos respiradores hospitalares mineiros, por exemplo. Houve um momento em que não havia respiradores no Brasil e não tínhamos uma indústria capaz de produzi-los. Determinados itens e cadeias de produção precisam ser pensadas de forma estratégica. Ficam muitos aprendizados. As parcerias público-privadas e entre empresas privadas são necessárias e estratégicas. A governança não é um objetivo ou conquista, é uma jornada”, completa o diretor de Operações do Mater Dei.