A carta de Madre Maurina

5 de maio de 2022 às 0h26

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Crédito: memoriasdaditadura.org.br

‘’Veja se você não vai esquecer do seu Deus!” (Palavras de um dos torturadores)

Estes os dizeres do restante da carta de Madre Maurina ao Ministro da Justiça.

“Dr. Fleury perguntou-me: ‘’Você é amante do Mário Lorenzato? Responda afirmativo, é o suficiente, estará resolvido. Vai me dizer que é diferente dos outros!’’ Jamais poderia afirmar uma tal mentira. (…) Foi então que ligaram a máquina de choques e se divertiram às minhas custas. (…) Apareceu na sala, um sargento dando ordens para que todos se retirassem, dizendo: ‘’Sou eu que vou conversar com a irmã. Vou deixá-la por enquanto por conta desses dois rapazes.’’ (…) Fui conduzida para a cela, juntamente com duas moças. (…). Não as conhecia. Foi neste grupo que me incluíram como se eu fosse terrorista. (…) Como religiosa, acostumada a uma vida organizada, em ambiente de respeito, muito me custou suportar (…) de um lado os soldados repetindo (…) insultos de baixo calão (…) e, de outro, os ruídos da famosa sala de interrogatórios, de onde, continuamente, ouviam-se os gritos lancinantes dos torturados e os barulhos dos espancamentos. (…) Fui levada à presença de uma pessoa loura, de olhos azuis, estatura média (…), disseram que era um sargento. (…) Eles se chamavam de “doutores”, vestiam-se à paisana e usavam apelidos, suponho que para fugirem à identificação (…) Achei que estivesse meio bêbado, sentia-se o repugnante cheiro de álcool. Senti pavor de ficar em sua presença, mas, tive de ficar, ali, fechada naquela sala, (…) atormentada por suas provocações. Entre outras coisas, dizia: ‘’Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu te quero muito. Vem pertinho de mim. Pelo amor de Deus, fala tudo. Eu quero te dar uma colher de chá, ou melhor, dá-me uma colher de chá. Eu tenho pena de deixar-te nua na presença de todos. É chato para mim. Vamos, me dá uma colher de chá… Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!’’ (…) Abraçava-me, tentava esfregar suas mãos nas minhas e procurava tocar os meus joelhos. Eu sentia uma repugnância terrível e não via a hora de livrar-me daquele homem. Insistia para que eu me confessasse conhecedora do movimento (…) Sempre com as mesmas atitudes (…) e com carícias dissimuladas, sentou-se displicentemente sobre a mesa, ordenando que eu me aproximasse dele. (…) Senti-me completamente atordoada, sem condições de coordenar ideias. (…) Aquele homem perguntou-me: “Você é socialista?’’ O meu ideal é religioso, e, por ele hei de trabalhar até o fim da minha vida. Ninguém poderá modificá-lo, pois minha promessa foi feita a Deus e não aos homens. (…) Na cadeia de Cravinhos permaneci 25 dias incomunicável. Apesar da insistência de meus irmãos (…) para obterem notícias minhas, não permitiram que nos comunicássemos. Nem tampouco foi permitido a minha superiora provincial falar comigo. (…) Tive a impressão de estar abandonada por todos. (…) Outro tormento foi a falta de assistência religiosa.(…) Solicitei a presença de um sacerdote para levar-me o sacramento da Eucaristia. Não o permitiram, dizendo: Também isso faz parte do castigo!’’ (…) No dia 18 de novembro, depois de muita insistência, permitiram que, por 10 minutos, (…) eu pudesse falar com o meu irmão. Dias depois pude ver a Madre Provincial, (…) também sob a vigilância de policiais. (…) Interrogada pelo Dr. Lamano, um dos delegados regionais, este tratou-me grosseiramente, dando-me pancadas no rosto, querendo forçar-me a dizer o que eu não havia feito. Não me foi possível esclarecer nada: tudo era feito na base da gritaria e pancada (…). A certa altura, o delegado gritou: ‘’Veja se você não vai esquecer do seu Deus! Agora vai apanhar juntamente com o rapaz seu protegido!’’ Trazendo o rapaz à minha presença, o delegado intercalava, às perguntas, pancadas no moço e em mim. (…) Aqui tem, Exa, um relatório que lhe apresento, como desencargo de consciência, pois espero com ele estar contribuindo para que outros não venham a sofrer os vexames e maus tratos a mim dispensados. Como brasileira e cristã que sou, gostaria imensamente que fossem usados métodos eficientes na aplicação da justiça, inspirada (…) no respeito à dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.”

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