Um genial romancista

14 de janeiro de 2020 às 0h01

img
Crédito: Divulgação

Cesar Vanucci *

“Testemunhar o seu tempo – respondi a um jovem que me perguntou qual é a função do escritor.” (Lygia Fagundes Telles)

Uma neta “fissurada” em leitura, indaga-me quantos livros são necessários a um escritor para alcançar a glória. Antes de falar da resposta dada, devo explicar, aos meus 25 assíduos e benevolentes leitores, que sou, sim, avô, aliás, falar verdade, bisavô, com muita honra. Mas, enquadrando-me em conceito expendido pelo saudoso Tancredo Neves, exerço essa condição por absoluto mérito e não por antiguidade. Dito o que, torno conhecida a resposta dada à netinha.

Para um escritor de talento uma obra-prima basta como garantia de acesso à imortalidade literária. No caso de Mário Palmério, “Vila dos Confins” teria bastado. Mas ele, exagerando na dose, testemunha ocular qualificado das coisas de seu tempo, resolveu dar-nos de quebra, ainda, “Chapadão do Bugre”. Um livro que, em meu modesto palpite, transmitido certa vez ao próprio autor, presenteia-nos com construção literária ainda mais bem elaborada (se isso fosse algo possível de desejar). Um livro com um toque poético que só pode mesmo ser encontrado nos melhores textos do romance.

O processo de criação literária costuma receber influências da vida real. Figuras e situações emergem do universo pessoal das recordações do escritor para tomarem corpo nos personagens e cenas trabalhados. Palmério usou abundantemente, em seus escritos, do recurso de trazer para a ficção, revestindo-os de esfuziante coloração e aplicando-lhes saboroso lirismo, episódios vivenciados em épocas passadas, conservados na memória popular e em arquivos públicos. Num trabalho de investigação jornalística da melhor qualidade, o renomado jornalista Jorge Faria, do antigo “Diário da Tarde”, desentranhou do cartório de uma cidade do sul de Minas os detalhes do incidente da chacina dos coronéis, contado no “Chapadão do Bugre”, que marcou, pela força da narrativa, um momento épico no romance brasileiro. Tive a alegria de chamar a atenção de Mário Palmério para o excelente texto jornalístico publicado e de aproximar, há mais de 30 anos atrás, o escritor do repórter.

Em suas histórias, Palmério se valeu sempre do artifício de inventar para vários personagens nomes que lembravam, numa espécie de sinonímia, os das criaturas de carne e osso em cujas ações buscou inspiração. Em outras situações, os nomes são mesmo de verdade. Minha avó Carlota e minhas tias Luzia e Nené, de saudosa memória, são retratadas, nas páginas do “Chapadão”, em suas idas diárias matinais, Uberaba, à Igreja de São Domingos, um lindíssimo templo revestido de pedra tapiocanga, erguido pela Congregação Dominicana, no início de sua ação apostólica em terras brasileiras.

Com duas obras-primas, Palmério chegou, em feito sem paralelo, à Academia Brasileira de Letras. Foi de tal ordem o clima de entusiasmo provocado pelo aparecimento na cena literária de um novo gênio do romance que, na véspera da escolha, personagens, com peso na média das opiniões acadêmicas, impossibilitadas de comparecer, fizeram questão fechada de tornar público o voto favorável ao escritor uberabense-carmelitano. Caso de Assis Chateaubriand.

Confie-se a um instituto de pesquisas de opinião qualquer a tarefa de colher, junto aos estudiosos, os títulos de romance que mais forte impressão deixaram no espírito popular. Duvido muito que, numa pesquisa desse gênero, os dois livros de Palmério deixem de ser mencionados com realce.

“As memórias do assassino perfeito”, ainda inédito, seria, infalivelmente, uma terceira obra-prima. Tive em mãos, há muitos anos, originais dos primeiros capítulos. Identifiquei, de pronto, o padrão literário inconfundível presente tanto em “Vila dos Confins”, como em “Chapadão do Bugre”.

O romancista costumava se embrenhar pelos ermos dos chapadões sem fim, gravador ligado, recolhendo ao vivo, à volta de uma fogueira sob o céu estrelado da madrugada, depoimentos da gente curtida do sertão, com seus “causos”, suas crendices, suas lendas, seu típico palavreado. Fez o mesmo em suas andanças pela fascinante Amazônia, sem todavia passar pra letra de forma suas por certo eletrizantes experiências. Isso ajudou Palmério a compor enredos ricos em autenticidade roceira. E, ao mesmo tempo, como fruto do imenso talento que o romancista carregava, tão melodiosos em sonoridade poética.

* Jornalista, presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais  (cantonius1@yahoo.com.br)

Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

Siga-nos nas redes sociais

Comentários

    Receba novidades no seu e-mail

    Ao preencher e enviar o formulário, você concorda com a nossa Política de Privacidade e Termos de Uso.

    Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

    Siga-nos nas redes sociais

    Fique por dentro!
    Cadastre-se e receba os nossos principais conteúdos por e-mail