Governo prepara projeto para mudar regras do RRF
Brasília – O Ministério da Fazenda pretende dispensar estados em dificuldade financeira de privatizar empresas, vender ativos ou cortar benefícios fiscais para ter direito a ingressar no Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Em alguns casos, eles também poderão expandir suas despesas em ritmo acima da inflação.
Por outro lado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer exigir dos governos estaduais um pagamento extraordinário anual de parte da dívida, em valores crescentes até o fim do programa de socorro.
As mudanças constam na minuta do projeto de lei complementar para alterar o RRF, que passaria a se chamar “regime de reequilíbrio fiscal”. O documento não é público, mas foi obtido pela reportagem.
Em entrevista, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, confirma o teor da minuta e defende as modificações. “O Regime de Recuperação Fiscal não é um pacote de benesses. É um mecanismo de socorro aos estados”, explica.
Ele ressalta que o texto ainda está sujeito a mudanças. A proposta está sendo debatida com representantes dos estados e precisa ser validada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pelas demais áreas do governo antes de ser enviada ao Congresso Nacional.
A intenção de modificar o RRF foi anunciada pela Fazenda no fim de julho, atendendo a uma reivindicação dos próprios estados em crise. Eles afirmam que o desenho atual do programa de socorro é insuficiente para lidar com a profundidade dos desequilíbrios fiscais.
O governo federal promete maior foco nos resultados, mas sem amarrá-los a medidas de ajuste específicas. A intenção de flexibilizar as contrapartidas acendeu um alerta entre economistas, que viram o risco de um afrouxamento excessivo no programa. Até agora, no entanto, os detalhes do projeto ainda não eram públicos.
A minuta obtida pela reportagem mostra que algumas exigências e punições foram, de fato, flexibilizadas. Por outro lado, o governo incluiu mudanças que desagradaram aos estados por exigirem deles um maior esforço de caixa para honrar obrigações com a União.
“Estamos flexibilizando algumas coisas, mas também puxando em outras. É natural que os estados reclamem das coisas que apertam mais, mas de fato o objetivo é esse: forçá-los a ir recuperando a capacidade de pagamento para poder honrar as dívidas com o governo federal. Se não, ficam com muita margem fiscal”, afirma Ceron.
O RRF foi criado em 2017 e passou por alterações em 2021. De lá para cá, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul aderiram. Minas Gerais solicitou entrada, mas ainda não teve seu plano homologado.
O problema alegado pelos governos estaduais é que algumas medidas adotadas pela União inviabilizaram o cumprimento de seus planos – entre elas, o corte forçado nas alíquotas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre combustíveis e energia elétrica no governo Jair Bolsonaro (PL), que gerou um desfalque bilionário.
Uma das mudanças centrais é a ampliação da duração do regime de nove para 12 anos. Assim, a retomada dos pagamentos da dívida com a União será feita de forma ainda mais gradual.
Há outras flexibilizações. As medidas de ajuste obrigatórias caem de oito para seis anos, com a exclusão da alienação de ativos (como empresas estatais) e do corte de ao menos 20% nos incentivos fiscais.
As vedações, práticas proibidas durante a vigência do socorro, viram “compromissos”, uma promessa dos estados de que não adotarão os atos elencados. Apesar da mudança de nomenclatura, Ceron afirma que o efeito esperado é o mesmo de uma vedação.
Atos proibidos
A lista de atos proibidos ficou menor. A proposta exclui vedações à concessão de reajustes salariais pela inflação, embora mantenha a proibição a aumentos reais. Fica liberado criar ou reajustar despesas obrigatórias, conceder novos benefícios fiscais e gastar com publicidade não ligada a temas de utilidade pública. O texto ainda exclui a proibição a cortes de tributo.
“O ente tem que atingir o resultado e ter opções com diferentes visões de mundo e de Estado. Se for um governo contra privatizações, eu vou impedir de estar no regime só porque ele não quer vender uma empresa, mas topa fazer um ajuste pelo outro lado?”, argumenta Ceron.
“A gente queria dar alguma flexibilidade, não total. Mantivemos, por exemplo, restrições a coisas que afetam o equilíbrio fiscal de longo prazo. É importante ter algum rigor”, afirma.
Teto de despesas poderá ter uma flexibilização
O texto projeto de lei complementar para alterar o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) flexibiliza o teto de despesas a ser seguido pelos estados. A exemplo do que foi feito no novo arcabouço fiscal da União, o programa passa a admitir a expansão do limite acima da inflação, desde que seja “compatível com o atingimento do equilíbrio fiscal”.
Segundo o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, a análise será feita caso a caso. “Por exemplo, Goiás conseguiria provavelmente ter algum crescimento da despesa e estar em um processo de recuperação adequado. O Rio de Janeiro dificilmente consegue”, avalia. “Não há uma discricionariedade. Ela (a regra proposta) dá uma margem para você tratar de forma peculiar cada um dos entes”, pondera.
O governo também pretende afrouxar as penalidades. A ideia é aliviar os gatilhos que aceleram o pagamento da dívida, hoje acionados quando o estado atrasa as medidas de ajuste, descumpre as metas fiscais ou aprova iniciativa em desacordo com as vedações. A cobrança extra pode ser de 5%, 10% ou 20% da parcela, de acordo com a gravidade da violação.
Pelo projeto, o gatilho só será acionado se o estado aprovar medida que afronte os compromissos ou amplie despesas acima do teto. Além disso, a aceleração da dívida será sempre na proporção de 5% da parcela.
Apesar das concessões aos estados, a equipe do ministro da Fazenda, Fernado Haddad, defende medidas de aperto. A principal delas é a cobrança de uma “amortização extraordinária de dívidas com a União”, equivalente a 1% da RCL no primeiro ano, com adicional de 0,2 ponto percentual a cada novo exercício.
A aplicação da regra no plano de recuperação vigente do Rio de Janeiro obrigaria o estado, que está no terceiro ano do socorro, a pagar mais 1,4% de sua RCL à União em 2023 -o equivalente a pouco mais de R$ 1 bilhão.
“É uma forma de fazer um balanço das coisas. Não é um pacote de benesses”, afirma Ceron. “O objetivo é aumentar o esforço fiscal”, explica.
Concentração de poderes
A proposta também extingue a figura do Conselho de Supervisão da Recuperação Fiscal, instância hoje formada por representantes do Tesouro Nacional, do estado participante e do Tribunal de Contas da União (TCU). Suas atribuições passariam a ser exercidas exclusivamente pelo Tesouro.
A mudança é criticada pelos governos estaduais, que temem uma concentração de poderes nas mãos da Fazenda. O membro do TCU atua muitas vezes como um mediador de conflitos.
Para o Tesouro, porém, não faz sentido permitir que o próprio estado interfira nas decisões. A estrutura do conselho também custa dinheiro à União, pois os indicados ocupam cargos comissionados federais.
“Não é uma relação de igualdade, é uma relação de um credor com um devedor que alega não ter condições de pagar suas dívidas. E há um socorro financeiro. A gestão desse socorro financeiro compete ao credor. Não deveria ter uma participação decisória do próprio ente, dizendo se ele está cumprindo ou não. Há um conflito de interesses”, diz Ceron.
O secretário ressalta, porém, que a postura do governo é de diálogo. Ele diz ainda que a adesão ao novo modelo do RRF será “completamente opcional”, e os estados que já ingressaram no programa não são obrigados a migrar – neste caso, tampouco teriam acesso aos benefícios do novo desenho.
Segundo Ceron, a minuta está sendo discutida com os estados que participam do RRF. O debate será ampliado para abarcar os demais estados, uma vez que a proposta também mexe em dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Um dos artigos exige, a partir de 2027, que governadores e prefeitos mantenham recursos suficientes em caixa para quitar suas obrigações ao fim de todos os anos -hoje, a cobrança é feita apenas em fim de mandato.
“Tomamos a decisão de fazer algum ajuste pontual para ajudar os estados no que é possível. Mas também tem que ter uma contrapartida estrutural”, afirma o secretário.
Após o diálogo com os governos estaduais, o conteúdo do projeto ainda precisará ser validado no Executivo federal. Segundo ele, o mais provável é que o processo leve pelo menos mais 30 dias. (Idiana Tomazelli)
Ouça a rádio de Minas