Empresa, patrimônio social

30 de julho de 2019 às 0h01

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Crédito: Douglas Gomes

Cesar Vanucci *

“Sempre tive o social como fim e o econômico como meio.” (José Alencar)

Em recente comentário sobre o pronunciado interesse de alguns setores em privatizações de ativos públicos, aludi ao posicionamento do saudoso líder empresarial José Alencar a propósito da questão. Instado por leitores, retomo o papo.

A primazia do interesse social, a prevalência do interesse comunitário, do interesse coletivo, digamos assim, sobre quaisquer conveniências de ordem corporativista, utilitarista, classista constituiu traço comportamental marcante na trajetória de José Alencar. De minha convivência (de vários anos na Fiemg) com esse mineiro de origem humilde do povoado de Itamuri, que, à força de enorme talento e muito trabalho, ergueu o maior conglomerado têxtil do planeta e, ao inclinar-se pelos caminhos da política, tornou-se um dos homens públicos mais admirados da história brasileira, conservo bem nítidas amostras reveladoras da coerência aos princípios que pautava suas posturas e decisões.

Alencar definia em lapidar conceituação a missão da empresa no contexto das empreitadas humanas. Em linhas gerais, este o conceito básico que, didaticamente, costumava propagar: a empresa é patrimônio social. Pertence à comunidade por representar uma fração da economia. Micro, pequena, média ou grande, estatal ou privada, todas as empresas são frações da economia. A economia em si mesma não é fim. É meio – como meios são a tecnologia, a educação, assim por diante – para se atingir um fim. Ou seja, para se chegar à consecução dos objetivos. Sempre sociais. Para que os objetivos sociais possam ser certeiramente alcançados precisamos assegurar, nas atividades comunitárias, que a economia se mantenha próspera, forte e independente. Tal alinhamento de ideias acaba remetendo ao reconhecimento de que as frações da economia (em outras palavras, as empresas) têm que ser prósperas, fortes e independentes para que o bem-estar social possa predominar no jogo da vida. Não importa o tamanho, a origem do capital, a natureza acionária, se privada, mista ou estatal, o que vale e o que pesa, antes de tudo mais, é que as empresas – repita-se – mostrem-se prósperas. Revelem-se aptas, na condução dos negócios, a produzir com qualidade e lucratividade, contribuindo como instrumento relevante no esforço orquestrado da sociedade por meio da cadeia produtiva para a consecução dos nobres objetivos sociais.

Foi em decorrência de sua conscientização social atilada e percepção humanística que JA questionou, com autoridade, já na primeira hora em que eclodiram comentários a respeito do assunto, a momentosa privatização da Usiminas. O desassombrado dirigente do Sistema Fiemg deixou claramente explícito, naquele preciso instante, um posicionamento diametralmente oposto, como não é difícil imaginar, ao da grande maioria dos companheiros das lideranças empresariais. Sobretudo daqueles muitos que, laborando incuravelmente em tremendo equívoco, não hesitam, a três por quatro, em apontar na tese da privatização sem freios e na base da pechincha uma receita providencial para todos os males econômicos e sociais existentes.

O aflorar do tema privatização neste relato me transporta, agora, escorregando pelas ladeiras da memória, a um episódio assaz instigante, ocorrido em Brasília nos começos do governo Collor. Na condição de presidente da Fiemg e vice-presidente da CNI, José Alencar foi convidado a participar de um encontro com técnicos do Bird e do Banco Mundial destinado a transmitir, tintim por tintim, como era de costume dizer-se noutros tempos, a receita que havia sido utilizada na desestatização de empresas na Europa. A ideia era mostrar que o esquema poderia ser bom para o Brasil. Acompanhei-o na ocasião. Foi a reunião mais psicodélica que a crônica burocrática brasileira jamais registrou. Os participantes, dirigentes empresariais brasileiros na quase totalidade, foram saudados pelos coordenadores brasileiros – vejam só! – em inglês. Sem tradução simultânea, esclareça-se. Esse idioma foi empregado com excesso de pedantismo para introduzir o pretendido diálogo com os doutos d’além-mar. Ao depois, a palavra foi passada aos expositores. Estes expressaram-se, também, em inglês, um tanto menos em francês, com inesperados apartes, de uns para com os outros, numa língua difícil de identificar. De mim para comigo, estupefato com a inusitada situação, considerei a hipótese de tratar-se de algum dialeto falado na banda setentrional da Etiópia. Do evidente desagrado da plateia os tecnocratas brasileiros e estrangeiros, embriagados pela autossuficiência, aparentemente não se deram conta. JA não se conteve. Tomou da palavra e em duas ou três frases polidas, mas de modo incisivo e cortante, justificou a necessidade de sair tendo em vista um outro compromisso. Lembro-me de que, posteriormente, nos inevitáveis comentários críticos a respeito do surreal momento, ele deixou sentenciado que, com um começo desses, esse negócio de privatização podia acabar não dando certo…

  • Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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