Evocações de meu passaporte (VI)

19 de setembro de 2019 às 0h08

Cesar Vanucci*

“A violência está invariavelmente entrelaçada com a mentira.” (Soljenitsin, Prêmio Nobel em 1972)

Salta aos olhos. A Índia mostra-se empenhada num descomunal esforço em prol de um desenvolvimento acelerado. A proposta contempla a possibilidade de uma sacudidela pra valer nas perversas estruturas sociais estampadas em tudo quanto é canto. Tarefa hercúlea. São estruturas fortemente enraizadas. Imobilizadas no tempo. Condenam centenas de milhões de criaturas, inapelavelmente, a processos de vida degradante. Para que essa massacrante situação perdure tanto concorre poderosamente o arraigado e ultrajante regime de castas vigente.

Algum tempo atrás, numa viagem de trem, com duração de quase dez horas, de Maduban, proximidades da fronteira com o Paquistão, a Jaipur, ponto de parada obrigatória nos roteiros turísticos pelas deslumbrantes paragens indianas providas de monumentos arquitetônicos portentosos, conseguimos visualizar amostra contundente do sistema preconceituoso que alveja impiedosamente os chamados “párias”.

A furibunda manifestação de intolerância não deixa de ser, com todas suas implicações de origem religiosa, calcada em inadimissível “determinismo cármico”, um rematado e abjeto instrumento de dominação econômica. Com todas as letras, pontos e vírgulas.

Percorremos, desembaraçadamente, dezenas de vagões da composição, correspondentes às chamadas primeira, segunda e terceira classes. Num determinado ponto, vimo-nos impedidos, por um guarda, de dar continuidade à excursão pelos demais vagões do comboio. De forma polida, mas sem abrir chance a questionamentos, o guarda explicou que os vagões restantes eram interditados a passageiros das outras classes.

Na gare de Japur, ao término da viagem, colocamo-nos numa posição estratégica, procurando avistar os ocupantes dos vagões interditados. A saída das pessoas alojadas nos referidos vagões só ocorreu depois que os demais passageiros já haviam se distanciado. O que o nosso olhar atônito captou, então, foi um desfile desnorteante de “intocáveis”. Uma pequena multidão andrajosa, carregando nos semblantes e atitudes, junto com seus insignificantes pertences, trazidos nas mãos, o chocante conformismo da inapelável rejeição social.

Nestas “evocações”, fixados ainda em nossas andanças pela Índia dos mil fascínios e de gritantes contrastes sociais, anotamos outras evidências de truculência humana, captadas pelo olhar atento do repórter que nunca deixamos de ser.

Fomos visitar em Delhi o famoso “Portal da Índia”, belo monumento erguido em sinal de reconhecimento pela participação dos indianos na guerra contra o nazifascismo. Próximo ficam os palácios presidencial e legislativo. Tudo aconteceu em curto espaço de tempo. O veículo em que nos encontrávamos, uns oito brasileiros, foi interceptado por um militar.

Arrogante nos gestos e palavras, ele ordenou ao motorista – integrante de “casta inferior” – que estacionasse numa das veredas próximas. Ao depois, ordenou-lhe saísse do carro. Conduziu-o, aos empurrões, a local onde se achavam outros militares. De onde nos encontrávamos surpreendemos, com rigorosa nitidez, o momento em que o motorista transferia do bolso algumas rúpias para as mãos do militar, que o esbofeteou mais de uma vez.

Ele pôde retornar, depois disso, sem acompanhamento, ao veículo. Não ocultando a nossa perplexidade e indignação diante da cena presenciada, crivamos o guia de perguntas sobre a perturbadora ocorrência. Ele desconversou em indi, inglês e portunhol…

Nesta mesma noite, um domingo, tomamos um voo de Delhi para Frankfurt. Liberada a bagagem, à hora em que passávamos por uma das portas de acesso ao interior do aeroporto, recebemos de um guarda aduaneiro ordem ríspida para aguardá-lo, sentado em local próximo. Intuímos algo desagradável no ar. Um cheiro de achaque.

Ficamos esperando, por bom espaço de tempo, que o guarda se desfizesse da imensa fila de passageiros para nos atender. Quando o fez, cara de poucos amigos, tom de voz ríspido, perguntou por nossa profissão. Dissemos-lhe ser jornalista. “Jornalista?” – perguntou de novo, arregalando os olhos. Acrescentamos – “Jornalista e advogado”. E ele, com um jeito já diferente no semblante: – “Doutor?” E nós: – “Sim, doutor.” O papo, a partir daí, foi totalmente diferente. A liberação ocorreu sem quaisquer exigências adicionais.

Os dois episódios narrados deixaram-nos com uma gélida ideia de como é que têm início, em qualquer parte do mundo onde o desrespeito ao ser humano irrompa, certos incidentes que fazem, por vezes, de desprevenidos turistas, vítimas inocentes de truculências.

*Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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