Fraternidade e inconformismo

2 de fevereiro de 2019 às 0h01

Cesar Vanucci*

“Morreu um pedaço de mim.”
(Derenir Aquino Rocha, 68 anos de idade, desempregada, ribeirinha do rio Paraopeba tomado pela lama)

A dor e comoção suscitadas por impactante tragédia irmanam as pessoas. Abrem chance, às vezes, para que se desfaçam idiossincrasias e desavenças pessoais que pareciam incontornáveis. Contribuem para reduzir, ou até eliminar, tensões de origem banal acumuladas na convivência rotineira. E, também, desencadeiam ondas impetuosas de solidariedade, heroicas ações e contagiantes gestos de generosidade.

Brumadinho repetiu Mariana no sofrimento inenarrável e na afetividade trazida aos borbotões. Desde o instante fatídico em que as comportas se abriram para o dilúvio de lama, não pararam de jorrar demonstrações de fraternidade brotadas do mais genuíno sentimento popular. O espírito de cidadania marcou também altiva e edificante posição na agenda dos debates em curso sobre as desnorteantes causas e as imprevisíveis consequências da catastrófica ocorrência.

As eletrizantes imagens dos bombeiros, coadjuvados por outros agentes públicos, sobrevoando, esquadrinhando a pé, com inaudito esforço, as extensas áreas devastadas e mergulhando, com fervorosa obstinação, na movediça caudal barrenta; as cenas retratando a atuação de voluntários ardorosamente empenhados nas buscas e na prestação de serviços de apoio; o trabalho prestimoso das equipes de atendimento nos diversificados cenários armados para acudir necessidades e emergências de toda ordem; as redes de orações e de doações organizadas espontaneamente pela gente do povo; tudo isso faz ecoar, retumbantemente, um brado misericordioso que enaltece o espírito humano. Não é brado, visto está, que se aliene ao dever de propagar, alto e bom som, o justo inconformismo que se apossou da sociedade diante dos fatores causais dessa calamidade, com toque genocida, que poderia ter sido evitada, mas não foi à conta da ganância, insensibilidade social e incompetência técnica e gerencial.

O inconformismo é alimentado ininterruptamente por estarrecedoras revelações. Como as que se alinham na sequência. Relatório alerta que os metais do lamaçal procedentes da barragem vinda abaixo tornam a água do rio Paraopeba, que abastece numerosas cidades, nociva à saúde. Além daquelas que já conseguiram, em circunstâncias extremamente dramáticas, sepultar seus mortos, outras quase três centenas de famílias carregam pesado luto por entes queridos desaparecidos. A Agência Nacional de Mineração (ANA) dispõe de apenas três fiscais para inspecionar a segurança de 435 represas em Minas, 50 delas implantadas a montante, talqualmente as duas que derramaram lama, sofrimento e dor em Mariana e Brumadinho. Localizada a menos de dez minutos do centro de Rio Acima, existe uma barreira inativa há sete anos, pertencente a grupo australiano falido. O empreendimento não dá emprego a ninguém, não recolhe imposto e deixou antigos empregados sem receber salários. O dique citado figura na lista dos que constituem ameaça à segurança pública.

Documento liberado pelo Ministério Público Federal mostra que, desde 2014, as mineradoras Vale e Samarco vinham sendo advertidas sobre a gradativa perda de estabilidade dos rejeitos no Fundão, em Mariana. Duzentas e cinco barragens de mineração no País são consideradas de alto risco. Delas, 140 acham-se implantadas em Minas. A Vale fica com 32 por cento do total. Parece (mas não é piada): a Agência Nacional de Mineração elevou de R$ 3.200 para R$ 3.400 o valor máximo das multas a serem aplicadas a mineradoras. A “atualização” das multas acaba de sair do forno. O ato foi publicado no “Diário Oficial da União” no dia 31 de janeiro de… 2019. Omissão (ou que outro nome tenha) do Congresso impediu que o valor das multas às mineradoras pudesse ser estabelecido em bases sérias.

Medida provisória encaminhada no governo Temer chegou a prever penalidade de até 30 milhões. Mas a MP, sabe-se lá por quais insondáveis desígnios, perdeu prazo de votação. Adveio daí que os efeitos práticos preconizados não puderam ser colocados em vigência, tá bem?
Porta-voz da Vale ofereceu explicação de macabro surrealismo a respeito de a sirene de alerta, estrategicamente plantada, não haver soado, no caso do desabamento da barragem de Brumadinho. Não soou pela “simples razão” de que a barragem desabou. Tá danado… De outra parte, ninguém ainda se sentiu encorajado a esclarecer se foi por falta de sensibilidade social, ou por mesquinhez econômica, ou irresponsabilidade gerencial, ou todas essas coisas juntas, que as instalações de serviços administrativos, refeitório inserido, ficavam implantadas no sopé do gigantesco e ameaçador arrimo de contenção dos resíduos. A apreensão em Congonhas acerca dos riscos potenciais da barragem da “Casa de Pedra”, levou o Ministério Público a ordenar que esse complexo seja alvo de imediata vistoria.
Durma-se com um estrondo desses!

  • Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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