Incidente carnavalesco de outrora

20 de fevereiro de 2020 às 0h01

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Crédito: PXHERE

Cesar Vanucci *

“Uma ocorrência escabrosa!” (Palavras do presidente do clube a respeito

Mais uma historietazinha relacionada com preservativos nos usos e costumes populares.

Foi pouco antes de um animado “tríduo momesco” de meia dúzia de anos atrás. Como sabido, o tríduo momesco deixou de ser assim chamado quando em tudo quanto é canto a folia acabou sendo esticada por mais dias. Na Bahia de Todos os Santos e dos atabaques ininterruptos, até por tempo indeterminado. Sem hora pra começar nem acabar. O carro de um conhecido emparelhou-se com o meu na descida da Afonso Pena, de frente ao “farol”, como se diz em dialeto “paulistês”. Ele jogou pela janela uma pergunta que, por força das circunstâncias, não pude responder na hora: – Escuta aqui, meu chapa, o que há de tão engraçado pra você aí, sozinho da Silva no fusca, cair de repente na risada?

Explico, agora, respondendo à pergunta, a razão do riso solitário no flagrante da avenida. Eu havia acabado de guardar no porta-malas uma sacola atulhada de preservativos, a serem entregues a uma organização que dá guarida a excluídos sociais. Ao transportar o material, bateu-me a lembrança de uma festa carnavalesca de uns 60 anos atrás. O episódio relembrado naquela hora, inspirando confrontação com os costumes vigorantes em épocas bastante distanciadas, deu causa à reação que tanto intrigou meu amigo. História seguinte.

A batucada carnavalesca ia à toda no suntuoso clube, “frequentado pela nata de nossa progressista sociedade,” segundo a abalizada opinião do festejado colunista do jornal da cidade. A moçada rodopiava pelo salão  ricamente decorado, entregando-se com animação às relativamente bem comportadas brincadeiras, típicas dos folguedos, toleradas nas posturas morais dominantes. Das mesas, ao redor da regurgitante pista de dança, pais zelosos acompanhavam as graciosas evoluções das filhas donzelas com suas fantasias multicoloridas, de apurado gosto. De súbito, percorreu o salão, de mesa em mesa, trazido pelo vento do espanto e da indignação, um chocante relato. A esposa do diretor social, dama de peregrinas virtudes e de alta respeitabilidade, acabara de testemunhar, entre soluços e lágrimas, na sala de estar do reservado feminino, algo “superindecente”. A “escabrosa ocorrência”, tomando emprestadas palavras do presidente do clube na reunião de emergência montada para uma tomada enérgica de providências, consistiu na descoberta, largadas sobre o confortável divã onde madame se refestelava depois de haver retocado a maquiagem, de algumas “camisinhas de vênus” com indícios de uso recente. A primeira versão extraída dos fatos dizia que um casalzinho “prafrentex” havia resolvido mandar pra cucuia, na cara e na coragem, ali mesmo, valendo-se de momento de distração da vigilância, as sadias regras da moral e dos bons costumes. Chegou-se mesmo, com certo açodamento, à citação de nomes de supostos autores da “sórdida proeza”. O que acabou acendendo comentários maledicentes e, mais tarde, malquerenças familiares insanáveis. Outra versão posta nas especulações arguia a hipótese de que “aquelas indecências” houvessem sido lançadas por um estudante, malcaratista juramentado de cidade vizinha, depois de encher a cara com umas e outras. O auê à volta do “ato de depravação”, cujos pormenores ficaram para sempre inexplicados, afetou de modo irreparável a festa. Honrados chefes de família, batendo duro os calcanhares, convocaram as distintas consortes e amuados rebentos para se recolherem mais cedo aos respectivos domicílios. A orquestra recolheu mais cedo os instrumentos. A presença de foliões no baile seguinte, “terça-feira gorda”, sem intenção de trocadilho, foi magra. Bastante aquém das expectativas.

A história rendeu outros ruidosos desdobramentos. Numa assembleia religiosa, dias depois, devotos piedosos acompanharam, compenetrados, incandescente prédica tendo como foco o “abominável caso”, com o pregador caprichando nas citações das passagens bíblicas que se ocupam dos pecaminosos malfeitos ocorridos em Sodoma e Gomorra.

Quem, dentre as testemunhas oculares do bololô armado no baile carnavalesco poderia supor na época, mesmo dando trela ao mais ousado voo de imaginação que os “indecorosos artefatos de látex”, mercadoria clandestina incogitável nos hábitos de consumo das pessoas de bem, passariam num futuro não tão distante a ser maciçamente distribuídos na praça, com beneplácito oficial? Mais ainda: e com expressas recomendações paternas e maternas, aos mancebos e às moçoilas em flor, no sentido de que cuidassem de conservá-los sempre ao alcance da mão, guardadinhos nos bolsos e nas bolsas, pras eventuais emergências?…

Eta mundo velho de guerra sem fronteira!

*  Jornalista, Presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (cantonius1@yahoo.com.br)

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