Condecine: mais tributo, menos liberdade

14 de dezembro de 2019 às 0h01

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Crédito: ARQUIVO DC

ELTON DUARTE BATALHA*

O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 57, de 2018, de autoria do Senador Humberto Costa (PT/PE), dispõe sobre a criação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Tal regramento tem, teoricamente, a finalidade de induzir o crescimento da produção nacional a partir dos recursos auferidos pelo mencionado tributo, o qual incidiria sobre a comunicação audiovisual sob demanda e a distribuição de vídeo doméstico. É tema que merece reflexão não somente pelo impacto que pode acarretar no setor econômico sob análise, como também pela visão de mundo que lhe subjaz.

Campo de crescente importância, a comunicação audiovisual sob demanda surgiu com o desenvolvimento da tecnologia no âmbito das telecomunicações. De modo disruptivo, as antigas videolocadoras praticamente desapareceram, assim como aparelhos de DVD e de Blu-Ray, com o surgimento de serviços como Netflix, Amazon Prime Vídeo, Globoplay, Net Now, entre outros. A praticidade propiciada pelo vídeo on demand é a demonstração concreta da destruição criativa, de Schumpeter, ou da inovação destruidora, de Luc Ferry. O desaparecimento da rede de locadoras Blockbuster, há alguns anos, materializou o fenômeno descrito pelos mencionados pensadores.

O PLS nº 57, de 2018, porém, vislumbra tal fenômeno sob um prisma específico, ao propor a criação de uma contribuição com a suposta finalidade de fomentar a produção audiovisual brasileira, além de determinar a interferência estatal no conteúdo disponibilizado para os consumidores. A despeito de eventual boa intenção do legislador, as potenciais consequências econômicas e sociais não parecem servir de argumento para a procedência do projeto de lei sob estudo.

Do ponto de vista econômico, a tentativa de interferência governamental no catálogo das empresas, com a estipulação de percentual de obras brasileiras, tende a diminuir o número total de produtos disponíveis, evitando qualquer possibilidade de punição por parte das empresas. Inexistindo produções nacionais em número suficiente, não haveria alternativa a não ser reduzir o total disponível, de modo a manter-se dentro do limite legalmente estabelecido. Ademais, nada garante que os recursos auferidos com a tributação sejam utilizados no aumento da qualidade das obras brasileiras, aspecto sempre discutido quando comparado não somente com produções norte-americanas, mas também com obras argentinas, por exemplo. Dinheiro, nesse caso, não é sinônimo necessariamente de qualidade. Reserva de mercado, aliás, não costuma redundar em aumento de valor intrínseco do produto, fenômeno observável mais frequentemente em setores nos quais há competição e segurança jurídica.

Em termos sociais, a intervenção governamental reforça a noção de que o Estado deve orientar a sociedade no sentido daquilo que seja a melhor escolha. Os brasileiros talvez vejam mais qualidade em obras estrangeiras e não há problema nisso. A melhor maneira de instigar o aumento de produção nacional é investir em educação, algo que ampliaria a massa crítica nacional, a qual demandaria obras de maior densidade intelectual. Além disso, o caráter nacionalista do PLS incomoda em uma era na qual a visão mais aberta ao mundo, trazida pela globalização, ganha relevância. O anacronismo da visão provinciana que busca olhar para o que há dentro das fronteiras destoa do cosmopolitismo que preconiza a necessidade de olhar para outras experiências como forma, inclusive, de reafirmação da identidade, pois, como a noção mais básica de antropologia aponta, é a observação de diferenças que permite o delineamento da relação eu-outro.

Juridicamente, o PLS nº 57, de 2018, garante a participação de profissionais autóctones na execução de obras audiovisuais nacionais, determinando percentual de obras brasileiras no catálogo (no mínimo, 20% do total de horas ofertado), com ordem aos provedores de comunicação de investimento direto em produções nacionais e destaque do mecanismo de busca quanto a tais obras (artigos 12). O percentual da receita bruta anual do provedor do serviço de vídeo sob demanda que deve ser utilizado na produção ou aquisição de direitos de licenciamento de obras nacionais pode chegar a 4% (artigo 15). A Condecine é tributo cuja base de cálculo será a receita bruta anual das empresas contribuintes, podendo a alíquota chegar a até 4%, com evidente reflexo no valor dos serviços prestados à população. O recolhimento dos valores deverá ocorrer até 31 de março do ano seguinte ao da apuração, com a destinação dos recursos ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), conforme determina o artigo 23 do referido projeto de lei.

Nota-se, enfim, mais uma vez, a tentativa de interferência estatal na liberdade de escolha do consumidor, acompanhada da criação de mais um tributo, de forma a prejudicar o cidadão duplamente, seja no âmbito civil, seja no econômico. Um país verdadeiramente democrático é aquele em que a população tem suas diversas liberdades respeitadas. A ideia de que a sociedade precisa de um Estado que a tutele é anacrônica e não está de acordo com a noção mais moderna de cidadania ativa, na qual o indivíduo é respeitado em seus interesses, responsabilizando-se por suas escolhas. A Condecine representa mais do mesmo: a presença esmagadora e desnecessária do Leviatã na vida da população.

*Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito

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