O Corvo (VI)

12 de janeiro de 2019 às 0h01

Marco Guimarães*

Ainda atormentada pela dúvida sobre separar-se ou não de Maurice, Virgínia deixou apressadamente o seu apartamento na Rue Pascal, em direção à escola que dirigia, na Rue de l’Arbalète.

Estava atrasada, dormira muito mal naquela noite de domingo, e o despertador do seu telefone celular não conseguira cumprir a função destinada: acordar a sua proprietária às seis da manhã. Pela primeira vez, desde que assumira o posto, ela chegaria depois das sete horas.

Sabia que não precisava estar lá no começo das atividades; a diretora adjunta poderia substituí-la. Mas Virgínia impusera a si mesma a obrigação de receber e cumprimentar, à porta da escola, os pais que lá iam para deixar os filhos. Uma vez criado o hábito, não conseguia livrar-se dele. Achava que os pais estranhariam se rompesse com o que ela mesma instituíra.

Sua analista vivia lhe dizendo que a fraqueza e o excesso de respeito humano não a deixavam romper mais esse vínculo.

A distração a levara a dobrar à direita na Rue Claude Bernard, trajeto que fazia aos domingos quando ia à agência de seu banco, na Avenue des Gobelins, para consultar o saldo da conta ou fazer algum saque. Quando se deu conta do erro, já estava junto ao entroncamento dos boulevards Arago e Port Royal. — Merda, justo hoje que estou atrasada — praguejou.

Ainda meio atordoada com o equívoco, ficou sem saber que caminho tomar para ir à escola. Foi então que ouviu uma voz familiar.
— Virgínia, querida, que bom encontrá-la. Vim a Paris para resolver alguns assuntos.
— Que bela surpresa, Annick! Preciso muito conversar com você, mas estou atrasadíssima. Podemos nos encontrar à tarde? Que tal après midi no Café Saint Médard?
— Às seis horas estaria bom para você? — perguntou Annick.
— Sim, pode ser. Se houver atraso, será bem pequeno.

Enquanto se despedia da amiga, já imaginava o caminho mais rápido para chegar à escola: desceria novamente a Avenue des Gobelins, pegaria a Claude Bernard e, quando chegasse à Rue de l’Arbalète, dobraria à esquerda. Pronto, mais meio quarteirão e estaria bem diante de sua escola.
Quando chegou ao destino, ainda encontrou alguns alunos cujos pais também tinham se atrasado. O regulamento que ela havia modificado, ao assumir o cargo de direção, dava agora uma tolerância de trinta minutos. A diretora que a precedera, e que se aposentara há dois anos, impusera normas draconianas de não tolerar mais que cinco minutos de atraso.

As mudanças que fizera lhe garantiram a simpatia dos pais de alunos, os quais não se cansavam de render elogios a sua administração.

A vida atribulada e estressante da tenente Natalie raramente lhe proporcionava sonhos felizes ou descompromissados com a sua difícil e árdua profissão. Mas, naquela doce e fria manhã, ela experimentava uma serenidade digna dos anjos. Sonhava que voava através de verdejantes e coloridas colinas que se sucediam, formando vales de indescritível beleza. O que via na natureza, e o que sentia, criava uma verdadeira mistura entre misticismo e sensibilidade, expressa em sua face por espontâneos e breves sorrisos. Amante da literatura germânica, ela conseguia precisar, sem nenhuma dificuldade, a época e o lugar em que se encontrava: a poética e impetuosa Alemanha de Klopstock. Subitamente, viu-se transportada para a Place de la Concorde, na conturbada França de 1790, assumindo a personalidade de um parlamentar girondino prestes a ver separada do pescoço a sua preciosa cabeça. O seu espírito, que antes navegava em céu de brigadeiro, agora mergulhara em um atormentado mar de horrores, habitado por terríveis seres abissais. A sua face, antes relaxada, tornou-se tensa; olhos levemente franzidos e um sem-número de rugas orbiculares deixavam claro para quem quisesse ver que o seu sonho transformara-se em um pesadelo. Ela, então, identificou duas importantes figuras daqueles difíceis tempos, as quais lhe eram muito familiares, o comissário de polícia e o capitão Maurel, incorporando, respectivamente, as personagens Maximilien Robespierre e Saint-Just. Estavam para lhe oferecer indulgência, quando uma chamada telefônica a acordou.

— Tenente Natalie; desculpe-me por chamá-la em sua folga. O comissário pede que a Sra. venha imediatamente ao distrito. Não sabemos onde está o capitão Maurel e é preciso falar com a imprensa sobre o sequestro da menina Aline.
— O Maurel deve estar dormindo, quando voltei para casa às 4:40 da madrugada, ele ainda estava aí.
— Já fomos a sua casa; ele não está. Encontramos o seu carro na Rue Pascal, estacionado junto ao hotel daquela rua.
— O mesmo hotel cujas câmeras registraram o desaparecimento da menina e sua sequestradora.
— Isso mesmo.
— Ele anda meio desligado, excesso de trabalho, deve ter andado a esmo pela vizinhança. Talvez tenha pegado o Boulevard Port Royal e ido em direção à estação do RER B. Bem, isso agora não importa; em vinte minutos chegarei aí.

Natalie dormira com a roupa que usara no plantão do dia anterior. Chegara fatigada naquela madrugada e tão logo tirou o sobretudo que a protegia do frio atirou-se no sofá da sala de estar do seu apartamento, sem  nem mesmo retirar da cintura a arma que sempre levava consigo. Ela preferiu não dormir no quarto porque poderia acordar a sua namorada, e tudo o que não queria ouvir naquele momento eram as reclamações de sua parceira, reclamações essas que já tinham se integrado ao cotidiano das duas. Certa vez, na tentativa de justificar as ausências em compromissos marcados, ela citou Tchekhov, quando ele confessou para a mulher que tinha uma amante e que, diante da estupefação da sua interlocutora, complementou: a minha amante é a literatura, eu tenho que atender aos seus desejos, não posso viver sem ela. — Pois bem — pensou —, eu também tenho uma amante: a minha profissão, e também não posso deixar de atender os compromissos que ela me impõe. Deveria andar rápido, mas antes precisava de uma ducha. Dirigiu-se apressadamente ao banheiro e, com um gesto rápido, despiu-se e deixou que a tépida água que saía do chuveiro regasse o seu corpo por uns poucos minutos. Naquele dia violaria, em função da pressa, o hábito que impusera a si mesma; o de lavar os cabelos sempre que entrasse debaixo de um chuveiro.

*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal”, “A escolha”

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