O Corvo (XXXII)

20 de julho de 2019 às 0h01

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Crédito: Divulgação

Marco Guimarães *

O juiz Paul diz para Virgínia que se ausentaria por dois dias para presidir um julgamento em Dijon, cidade onde era titular de uma vara criminal. Ele aproveitaria para sondar o paradeiro de sua amiga Annick. Diz também que ela poderia ficar em sua casa até que tudo se esclarecesse.

— Acho que, em outras circunstâncias, eu não tomaria a decisão de deixar uma estranha em minha casa. Mas, vejo, não sei bem como, que você realmente já conhecia a casa. E depois, como lhe disse, sinto que você acredita dizer a verdade; vejo-a, ainda, como uma pessoa bem distinta. Vou me arriscar.
— Fico muito grata, Paul. Se estivesse em sua situação, não sei se faria o mesmo. Você é uma pessoa muito generosa. Espero que não esteja me considerando uma louca.
— Um louco jamais aventaria a possibilidade de que talvez estivesse louco, já que em tese ele perdeu a razão. Tenho que ir, você já conhece a casa e certamente sabe onde ficam a padaria e o supermercado.

Após a saída de Paul, Virgínia tentou mais uma vez ligar para Annick. A mesma indicação no visor de seu telefone: sem rede. Nas férias, costumava sair de Paris, e já havia, em diferentes épocas, viajado por quase toda a França sem ter qualquer problema com a rede de sua operadora. Resolveu ir a um pequeno shopping próximo para tentar resolver o problema. Logo à entrada, viu uma loja de revenda de celulares, onde explicou o problema a um dos vendedores e perguntou se ele podia ajudar.

— Bem, Sra., vejamos o que podemos fazer, disse-lhe o vendedor, reiniciando o aparelho.
— Pois é, reafirmando o que lhe disse, não tenho rede, e preciso muito falar com uma amiga que mora aqui.
— O estranho é que, mesmo sem rede, a sua operadora aparece no visor, e eu não conheço essa operadora. A Sra. disse que é de Paris, não é isso?
— Sim, isso mesmo, mas a operadora aparece porque eu comprei o aparelho na loja deles, mesmo sem rede aparece a logomarca da empresa.
— Ah, tá explicado. Pode ser que essa operadora só exista lá, mas é quase impossível, porque as operadoras de celulares têm redes em toda a França.
— Ah, claro. Eu mesma já viajei por toda a França e nunca tive problemas.
— Bem, espere aqui, consultarei um colega, pode ser que ele saiba mais e possa lhe dar uma explicação. Algum tempo depois, o funcionário retorna e diz que a operadora do celular de Virgínia não existia na França. Talvez fosse de um outro país, mas nesse caso a palavra roaming deveria aparecer no visor, o que não ocorria. Ele lhe oferece um cartão pré-pago e diz que, se ela necessitava falar com alguém, essa seria a melhor solução, no momento. Ela aceitou a sugestão e pediu que ele colocasse o cartão SIM.
— Pronto, aqui está. Tente agora falar com a sua amiga.
— Obrigada, já lhe pago — disse para o funcionário, enquanto discava o número de Annick.

Após alguns segundos, o empregado da loja pergunta se estava dando certo. Com o desânimo estampado no rosto, ela responde ter recebido uma mensagem dizendo que o número não existia. Ele se oferece para discar do seu próprio telefone e lhe pede o número. Ela volta ao registro de números discados do telefone e o dita.

— Minha Sra., há algum equívoco, aqui e em toda a França os celulares são de dez dígitos, e não de apenas oito, como esse que a Sra. me deu.
— Dez dígitos? Deve haver algum engano, não é possível.
Depois de pagar pelo cartão SIM, Virgínia deixou a loja e voltou para casa, mais confusa do que já estava. — O Paul disse que um louco nunca diz que está louco; devo ser uma exceção — disse ela para si mesma.

*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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