Maquiagem preconceituosa

1 de junho de 2019 às 0h01

Cesar Vanucci *

“Nunca soube que Nilo Peçanha era negro!” (Senador José Serra, governador de São Paulo à época da exposição dos painéis de rua retratando personagens negros de realce na vida brasileira)

Aludimos aqui, ainda recentemente, ao vergonhoso e usual procedimento adotado em certos setores, com a indesculpável complacência de alguns órgãos representativos da atividade intelectual, de se adulterar publicamente a condição étnica de notáveis personagens negros da cultura brasileira. Essa persistente e deploravelmente enganosa disposição de “maquiamento embranquecedor” – chamemos assim – de expoentes da inteligência dotados de cútis negra – “negra como a noite, negra como as profundezas d’África”, retornando à fala do poeta (negro) Langston Hughes – manifestação de preconceito racial indisfarçável, deslavado e indesculpável. Algo em estridente dissonância com os preceitos democráticos e humanísticos que recobrem de dignidade a caminhada do ser humano.

Como então sublinhamos no comentário de dias atrás, figuras da expressão de um Machado de Assis, de Lima Barreto, de Cruz e Souza, citando apenas alguns nomes estelares no cenário cultural de todos os tempos, são habitualmente retratadas, em imagens caprichosamente retocadas como “gente branca”. As coisas assim processadas derivam da estrábica concepção de que essa deformação de imagem serviria para “enriquecer-lhes” as biografias, quando, na realidade, muito pelo contrário, serve apenas para aviltar-lhes a memória.

Retomando hoje o desconcertante tema, anotamos outros nomes mais à lista de personalidades negras eminentes que se viram envolvidos em registros históricos inconsistentes no que diz respeito à sua autêntica origem racial. Vem a calhar, a propósito, informação de que em São Paulo, no final da década passada, em promoção das Secretarias de Cultura do Estado e da Capital bandeirante, ao ensejo da celebração do “Dia da Consciência Negra”, painéis medindo 5 metros de altura, projetando retratos de afrodescendentes ilustres, foram afixados nas fachadas de inúmeros prédios públicos e privados. Entre eles, o “Theatro Municipal”. A iniciativa representou, segundo seus idealizadores, contribuição no sentido de resgatar a história de cidadãos negros proeminentes de certa forma “embranquecidos” em ações de flagrante impostura social.

Encarregado, naquela ocasião, da pesquisa que compôs 100 nomes de brasileiros negros com participação valiosa no desenvolvimento do país, o antropólogo Dagoberto José Fonseca, professor da Universidade Estadual de SP, explicou que existe, na comunidade brasileira, uma certa inclinação, sem dúvida censurável, de promover “uma espécie de branqueamento da cultura negra”. A pesquisa proporcionou revelações que deixaram surpreendidos não poucos segmentos comunitários. Muita gente, por exemplo, ignorava – e até hoje isso continua acontecendo – que a notável compositora Chiquinha Gonzaga, autora, entre outras belas canções, da célebre marchinha “Ó, abre alas!”, era negra. Num seriado televisivo que alcançou recordes de audiência, o papel de Chiquinha, que também se notabilizou pela corajosa postura em defesa das mulheres contra a opressão machista dominante em seu tempo, foi vivido por Regina Duarte, atriz branca de grande prestígio popular a ponto de se tornar conhecida como “namoradinha do Brasil”. Da lista em questão faz parte também alguém que, vivendo entre 1867 e 1924, militante político de destaque, chegou a ocupar a própria Presidência da República, Nilo Peçanha.

Mais sugestivos exemplos: é do desconhecimento público que o fundador da Escola Politécnica de São Paulo, o engenheiro de renome nacional Teodoro Sampaio, era um afrodescendente. E, ainda, que uma mulher negra, Virginia Leone Bicudo, fundou a Sociedade Brasileira de Psicanálise.

A divulgação dos 20 personagens negros, de presença cintilante no processo de construção do desenvolvimento cultural, escolhidos para figurar nos painéis mostrados nas ruas da maior cidade brasileira, provocou, fácil deduzir, reações de surpresa. Surpresas derivadas, obviamente, dos efeitos deixados no espírito popular pelo contexto social preconceituoso dos fatos acima narrados.

Eis a relação dos 20 patrícios retratados nos painéis: Clara Nunes, cantora; Carolina de Jesus, escritora; Virginia Leone Bicudo, psicanalista; Gonçalves Dias, poeta; Mário de Andrade, escritor; Milton Santos, geógrafo; Cruz e Souza, poeta; Carlos Gomes, compositor; Lima Barreto, escritor; Chiquinha Gonzaga, compositora; Luiz Gama, advogado; José do Patrocínio, jornalista; Leônidas da Silva, craque de futebol; Juliano Moreira, médico; André Rebouças, engenheiro; Teodoro Sampaio, engenheiro; Machado de Assis, escritor; Castro Alves, poeta; Geraldo Filme, músico; Nilo Peçanha, político.

  • Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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