Prática gera fuga de capital do setor mineral

11 de julho de 2018

O processo de internacionalização de grandes corporações, que pulverizaram unidades produtivas, de serviços e de comércio em vários países nos últimos anos, transformou as transações entre empresas do mesmo grupo econômico em uma prática predominante no comércio internacional, com participação de 60% a 70% em todo o fluxo dos negócios entre nações. Porém, os preços praticados nestas transações nem sempre representam uma operação pura de compra e venda e podem ser determinados por outros interesses, como economizar tributos. A prática trouxe à tona um fato gerador de muita polêmica no Brasil: os preços de transferência. Por definição, o preço de transferência é o valor cobrado por uma empresa na venda de um bem a outra empresa a ela relacionada, por um preço abaixo do preço de mercado, o que é facilmente aplicado, por exemplo, ao mercado de commodities, e, no caso do Brasil, ao minério de ferro e outros minerais, com cotação regulada pelo ambiente internacional. O problema é que isso pode implicar em elisão (sem ato ilícito) ou até mesmo em evasão (com ato ilícito) de divisas do País origem do bem ou produto. “No Brasil, as commodities têm participação importante na economia, especialmente na balança comercial e nas exportações. Por isso, este arranjo de preço de transferência acontece no setor. Posso dizer que esta prática é relativamente comum no segmento de commodities e a Receita combate”, confirmou o auditor-fiscal da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil (RFB) em Minas Gerais, Isac Moreno Falcão. Estudo intitulado “Mensuração da Fuga de Capitais do Setor Mineral no Brasil”, da Rede Latino-Americana sobre Dívida, Desenvolvimento e Direitos (Latindadd), em conjunto com o Instituto Justiça Fiscal (IJF), mensurou o quanto a prática de preços de transferência no setor mineral onera o País. O levantamento mostrou que o subfaturamento nas exportações de minério de ferro a partir do Brasil gerou a fuga de US$ 39,1 bilhões entre 2009 e 2015, uma média de aproximadamente US$ 5,6 bilhões por ano. A este valor subfaturado está associada uma perda de receitas fiscais de US$ 13,3 bilhões no mesmo período. “Uma empresa localizada no Brasil, que vende seus produtos para o exterior, poderá praticar preços inferiores ao que seria praticado numa operação normal, reduzindo, assim, seu faturamento no País, o que também reduzirá seu lucro tributável. Na importação poderia ocorrer o movimento contrário. Ao comprar de uma subsidiária, poderia superfaturar os preços, de forma a aumentar seus custos, diminuindo, da mesma forma, seus lucros”, explicou o diretor de Assuntos Institucionais do IJF, Dão Real. Venda de um bem a outra empresa do mesmo grupo por preço abaixo de mercado é comum no mercado de commodities Segundo ele, a prática de manipular preços internacionais para pagar menos tributos é comum entre empresas transnacionais e produz diversos efeitos. O primeiro deles é a sonegação ou elisão de tributos, o que diminui a capacidade do Estado de promover políticas públicas, inclusive as relacionadas aos danos produzidos pela própria atividade minerária, como os danos ambientais, por exemplo. Outro efeito é a fuga de divisas e, por último, uma falsa ideia de lucratividade das operações no Brasil, o que acaba pressionando para o rebaixamento dos salários ou ampliação de benefícios fiscais. Dão Real explicou que, quando a empresa intermediária está situada em um paraíso fiscal, a parcela de lucro que foi reduzida no Brasil por estas duas práticas seria descolada para este paraíso, cuja característica mais atrativa é não cobrar imposto sobre os lucros. “Ainda que a motivação principal desta arquitetura seja a sonegação ou a elisão de tributos, de fato uma parte relevante dos preços de venda internacionais acaba sendo transferida para o exterior, caracterizando a fuga de divisas”, pontuou Real. O estudo mostrou ainda que 70% de todo o comércio exterior brasileiro ocorre entre empresas vinculadas ou com subsidiárias em guaridas fiscais, sendo que 82% do minério de ferro comprado no Brasil vai para a Suíça. Além disso, 26% do preço negociado na exportação do insumo fica no exterior, conforme o levantamento. Fuga de divisas – Para o sócio da William Freire Advogados, Paulo Honório de Castro Júnior, a legislação de preços de transferência prevê, implicitamente, uma diferença significativa entre os preços praticados nas exportações brasileiras de minério de ferro e a cotação internacional do produto, indicando a transferência de recursos ao exterior implicitamente. “O potencial elisivo de uma operação caracterizada por preços de transferência está vinculado a duas condições: exportar para paraísos fiscais; e exportar para outra empresa vinculada”, afirmou o advogado, lembrando que, uma vez cumpridas essas duas condições, a operação pode acarretar na fuga de divisas do País. LIMITE ENTRE ELISÃO E EVASÃO É TÊNUE EM OPERAÇÕES INTERNACIONAIS No Brasil, não existem impedimentos legais para a realização de operações comerciais internacionais entre empresas vinculadas. No entanto, a legislação nacional prevê a obrigatoriedade de as empresas apresentarem demonstrativo de preços de transferência sempre que negociam com empresas vinculadas no exterior. O propósito destes demonstrativos é comparar os preços praticados com preços parâmetros de mercado, que representam operações normais. Em caso de diferenças que reduzam o lucro da empresa no País, devem ser feitos os ajustes ao lucro tributável para balancear a equação. Para o diretor de Assuntos Institucionais do Instituto Justiça Fiscal (IJF), Dão Real, o problema principal é quando são criadas empresas fictícias apenas para permitir a manipulação dos preços. “Muitas empresas intermediárias situadas em paraísos fiscais são apenas ficções. Elas não existem de fato. São apenas formalidades jurídicas, caixas postais. As operações comerciais e emissão de documentos são controladas e realizadas no Brasil. Neste caso, as operações realizadas com estas empresas não passam de simulações, o que é ilegal”, argumentou. Existe outro tipo de situação em que podem ser instaladas estruturas administrativas nos paraísos fiscais para realizar alguns tipos de procedimentos, como intermediação comercial e marketing. “Normalmente são pequenas estruturas operacionais. Essas empresas são utilizadas como compradoras das exportações brasileiras e revendedoras para clientes finais. Neste caso, o que define o nível de legalidade ou ilegalidade está no valor que fica retido no paraíso fiscal, supostamente a título de remuneração dos serviços intermediários. Ele é compatível com os serviços realizados? Se não, podemos estar diante de uma operação simulada, o que caracteriza fraude”, disse. “A análise sob a moralidade da conduta não é técnica, mas do ponto de vista tributário, a licitude ou ilicitude do caso tem que ser analisada isoladamente. Vender para uma empresa que não é o consumidor final não é ilícito, mas quando se vende um produto por um preço que cria um expediente artificioso começam a aparecer indícios de ilicitude”, completou o auditor-fiscal da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil (RFB) em Minas Gerais, Isac Moreno Falcão. A legislação sobre os ajustes de preços de transferência, desde 2013, exige que as empresas utilizem como preço parâmetro para seus ajustes os preços de cotação internacional das commodities. No entanto, o estudo da Rede Latino-Americana sobre Dívida, Desenvolvimento e Direitos (Latindadd), em conjunto com o Instituto Justiça Fiscal (IJF), deixou evidente que mesmo utilizando estas referências, as empresas exportadoras realizaram ajustes que correspondem a apenas 23% dos valores subfaturados. “Se focarmos em exportação, a regra do preço de transferência para empresas que operam com commodities cria um parâmetro de preço vinculado à cotação da commodity. Existe um limite de divergência de até 3% de desvio entre o preço praticado e o de mercado. Se passar a diferença, a empresa faz o ajuste proporcional no lucro tributável para efeito de Imposto de Renda”, completou a sócia da KPMG, líder na prática de Preços de Transferência, Eliete Ribeiro. Já o vínculo entre as empresas envolvidas na operação, continua a especialista, é determinado por lei, podendo ser societário ou administrativo. “Porém, existem outras hipóteses, por exemplo, se o exportador vende para uma trading localizada em um paraíso fiscal, já se pressupõe um vínculo, mesmo que o vínculo societário não exista na prática”, justificou Eliete Ribeiro. ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS PEDIRÁ APURAÇÃO Para a Associação dos Municípios Mineradores (Amig), o estudo da Rede Latino-Americana sobre Dívida, Desenvolvimento e Direitos (Latindadd) e do Instituto Justiça Fiscal (IJF) comprova que o minério de ferro é vendido para o exterior para empresas vinculadas e depois é revendido por esta empresa para o verdadeiro cliente, confirmado a fuga de divisas do País. A consultora jurídica da Amig, Rosiane Seabra, revelou que a entidade levará a situação para a Agência Nacional de Mineração (ANM) e para o Ministério da Fazenda, em uma tentativa de recuperar o que ela chamou de “prejuízos” decorridos com a operação em relação a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem). “Manteremos o diálogo aberto para regularizar essas ações que ainda são utilizadas pelas grandes exportadoras de minério no Brasil. Não iremos retroagir ou ficar inertes com dados apresentados por instituições respeitadas que buscam a justiça fiscal”, reforçou a consultora da Amig. É que, como lembrou o sócio da William Freire Advogados, Paulo Honório de Castro Júnior, a regra dos preços de transferência foi estendida para a Cfem pela Medida Provisória (MP) 789/2017, que virou a Lei 13.540 de dezembro 2017, e é fiscalizada pela ANM. “Ao aplicar o instituto do preço de transferência para a Cfem, a legislação obriga as empresas que exportam com valor inferior ao de mercado a fazer o ajuste da diferença na base de cálculo exação também e não só mais na base do Imposto de Renda. É importante que ANM regulamente esta Lei de combate ao potencial elisivo destas operações”, reforçou. Por outro lado, para o advogado, a nova lei da Cfem traz uma inovação em relação ao previsto para o Imposto de Renda. “O preço de transferência é uma regra antielisiva específica que pressupõe, logicamente, a existência de potencial elisivo, o que só se verifica em exportações para empresas localizadas em paraísos fiscais ou para empresas vinculadas. Por isso, na minha avaliação, a Lei 13.540/2017 é inconstitucional ao determinar o teste de preço de transferência mesmo para exportações já praticadas em livre mercado”, argumentou. Ibram – Procurado pela reportagem, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), por meio de nota, frisou que “exportadores necessitam de estrutura internacional para ganhar competitividade em suas operações e sobreviver no mercado global, trazendo ganhos de produtividade e maior potencial de crescimento do país-sede das empresas”. Para o Ibram, a Cfem é a participação no resultado da exploração mineral e não alcança resultados de comercialização e eficiência logística internacionais ou a industrialização realizada em outros países. Além disso, para a entidade, “as vendas a empresas ligadas são legais e sempre foram regulamentadas e fiscalizadas pela Receita Federal do Brasil (RFB), não havendo qualquer irregularidade na utilização do preço de transferência como base de cálculo para a Cfem”. O Ibram alega, ainda, que o novo marco legal da mineração incorporou e reconheceu expressamente regras de regulação das relações comerciais entre empresas controladoras e controladas no exterior, adotando o PCEX (preço parâmetro definido e fiscalizado pela Receita Federal) como base de cálculo da Cfem nas operações de exportação. “Não há, portanto, espaço legal para transferência artificial de lucros para as controladas e coligadas no exterior ou subfaturamento. A Receita Federal, que tem competência plena e exclusiva para fiscalizar eventuais abusos, está sempre vigilante e controlando os preços praticados”, completou o Instituto.

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