De cama

14 de dezembro de 2018 às 0h01

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

Djanira apertou o botão da campainha próxima à bisnaga do soro, as mãos vacilantes. Repetiu o gesto, com esforço. Ansiosa, gritou pela enfermeira. Renata ainda demorou alguns segundos para aparecer. Lavava urinóis. Chegou afobada, a respiração ofegante, temendo algo grave. A velha não lhe deu tempo para pensar.

– Chame Veruska. Agora.

Renata franziu o cenho. No rosto, a esperada expressão de asco. “Agora”, repetiu Djanira, autoritária, tremendo o fio frágil de sua voz. “E não quero saber de relatório para médico nenhum. Eles não têm nada a ver com a minha vida”, prosseguiu, valente. A cuidadora localizou o celular no criado-mudo. Contrariada, identificou o número pedido na agenda de contatos.

Simulou a ligação. Traquejada, Djanira interrompeu a farsa em andamento. ‘Não tente me enganar, Renata. Não perca o seu tempo. Até hoje você acredita que vai conseguir me tapear? ’ A moça suspirou fundo.

Conformada, refez a digitação. Enojada, esticou o braço. Djanira tomou o aparelho, decidida: “Veruska, sou eu”. A conversa fluiu, agradável. A fisionomia da velha pareceu distender-se. Um sorriso molhou seus lábios secos. “Você consegue estar aqui a que horas? Venha rápido, menina…”
Renata ouviu as instruções de sempre. Obediente, iniciou o complexo ritual do banho possível, adequado a quem está de cama há dez anos. Retirou os curativos com a perícia típica. Mais uma vez, constatou que algumas feridas jamais cicatrizam. Havia duas, em especial, que intrigavam a enfermeira e a equipe encarregada do tratamento de Djanira: a primeira na altura do peito; a segunda na virilha, o local mais quente e úmido do corpo da velha.

A bacia com água morna foi posta sobre a cômoda. Com a destreza habitual, Renata aplicou a quantidade exata do sabonete líquido prescrito pelos médicos sobre a esponja recomendada. “A nuca, Renata, a nuca. Depois as axilas, as axilas”. Tentando concentrar-se na sequência de procedimentos necessários ao sucesso da operação, a moça se limitava a assentir com a cabeça, sem proferir palavra. Djanira não dava trégua: ‘a cintura. Eu ainda tenho cintura’, insistia, já pensando na cor do batom que usaria naquela tarde.


Veruska buzinou três vezes, seguindo o combinado. Aníbal abriu o portão da garagem. A menina estacionou o carro no local de costume. Discreto, o velho vigia cumprimentou-a, monossilábico, censurando bravamente a vontade de acompanhá-la com os olhos até a entrada principal. Fiel a seus valores, Renata não estendeu a mão à visitante. Fez o pagamento em dinheiro vivo, com a culpa de quem transaciona com o diabo, vendo o maço de notas novas sumir na bolsa comprada em loja sofisticada. “Djanira está do mesmo jeito, menina. Por favor, pense bem no que vai fazer. Eu sou responsável por ela. Não me crie problema”. “Eu sou uma profissional, Renata”, respondeu Veruska, subindo as escadas sem olhar para trás, displicente, o salto alto.

  • Jornalista. Da Academia Mineira de Letras

Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

Siga-nos nas redes sociais

Comentários

    Receba novidades no seu e-mail

    Ao preencher e enviar o formulário, você concorda com a nossa Política de Privacidade e Termos de Uso.

    Facebook LinkedIn Twitter YouTube Instagram Telegram

    Siga-nos nas redes sociais

    Fique por dentro!
    Cadastre-se e receba os nossos principais conteúdos por e-mail